Crítica
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Sinopse
Os bastidores da tragédia que aconteceu na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no ano de 2013.
Crítica
Há dez anos, no dia 27 de janeiro de 2013, o Rio Grande do Sul – e o Brasil, e, em certa medida, o mundo inteiro – acordou com uma trágica notícia: mais de 200 jovens, entre moças e rapazes, haviam morrido vítimas de um incêndio no interior da boate Kiss, uma das mais badaladas de Santa Maria, no interior gaúcho. Com lotação para cerca de 600 a 700 frequentadores, o lugar recebia, naquela noite, mais de mil pessoas. Além disso, várias outras questões de ordem e de controle foram desrespeitadas: alvarás de funcionamento, registros de vistorias, adequamento do local ao público e às atividades propostas. Enfim, o amontoado de irregularidades era imenso. No entanto, é o tipo de coisa que, na maioria das vezes, passa desapercebido – ninguém pede, antes de adentrar em um clube noturno, se os trâmites locais foram todos observados, se as saídas de emergência estão em ordem e se os extintores de incêndio estão em pleno funcionamento. Melhor ainda, quem iria se preocupar se, em um lugar fechado, um dos músicos iria cometer a insanidade de acender um dispositivo de fogos de artifício e, em conjunto, se a espuma do isolamento sonoro seria capaz de, em contato com o fogo, liberar substâncias tóxicas capazes de matar de forma lenta e silenciosa, sem que algo pudesse ser feito a respeito? Pois bem, em Todo Dia a Mesma Noite, o drama é justamente esse: quando a exceção se tornou regra. E o desespero daqueles que sobreviveram para relembrar desse incidente pelo resto dos seus dias.
Com apenas cinco episódios, Gustavo Lipsztein (criador do programa, indicado ao Prêmio Guarani pelo roteiro de Depois a Louca Sou Eu, em 2022, além de ser responsável por séries como 1 Contra Todos, 2016-2020, e a recente Santo, 2022) e a diretora geral Julia Rezende não perdem muito tempo com o evento em si, pois o foco está nas consequências do mesmo. Assim, o primeiro capítulo já é de imenso impacto. Não há uma necessidade em se criar empatia com as vítimas: elas já contam com esse sentimento por parte do público, visto que foram vítimas de uma imensa injustiça. Cientes disso, os realizadores se encarregam apenas de rápidas apresentações, para que a noite possa cair e o momento de suposta alegria e descontração se veja transformado em um pesadelo que perdura até hoje. O foco, enfim, está nos sobreviventes. Não nos que conseguiram, de um jeito ou de outro, fugir do caos. Mas naqueles que carregam essas chagas. Os pais e irmãos que perderam seus filhos e melhores amigos. O incêndio, em si, é atordoante. Mas não dura mais do que alguns minutos. O que aconteceu, portanto, todos já sabem. O importante, agora, é descobrir não apenas os porquês, mas também as consequências.
A Noite, o episódio de estreia, se encarrega, portanto, de narrar o inenarrável. Rapazes e garotas das mais diversas classes sociais, em uma cidade pequena como Santa Maria (menos de 300 mil habitantes), se encontram nos mesmos lugares com imensa frequência. Nesse dia específico, tempo de férias e de formaturas, a boate Kiss era O lugar para se estar. Assim, quatro focos de ação começam a se estabelecer. A menina que recém fez aniversário e quer comemorar com as amigas; o estudante que veio de São Paulo em busca de uma nova oportunidade de ensino; o rapaz que pegou o carro dos pais emprestado para se divertir; e o jovem que deixou a fazenda da família para se encontrar amigos na cidade. Além deles, há dois retratos dos tantos que escaparam com vida, mas seguem com as marcas pelo próprio corpo: Grazi (a estreante Paola Antonini), que teve uma perna amputada (a atriz também passou pelo mesmo trauma físico), e Fernando (Nicolas Vargas), que teve a maior parte do corpo queimada e, além do coma, passou meses recebendo enxertos de pele até conseguir levar uma vida mais próxima do normal. Ambos universitários, representam parte significativa da população não apenas afetada neste caso, mas também da cidade em si.
“Aquele que não conhece a História, está condenado a repeti-la”, afirma o sábio. Pois essa é a melhor das justificativas para a existência de uma minissérie como Todo Dia a Mesma Noite. Lançada de forma quase simultânea com a documental Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria (2023), a versão ficcional do mesmo episódio tem estrutura e proposta definidas – e, por se tratar de uma narrativa mais familiar a grande maioria dos espectadores (acostumados a novelas e seriados), é provável que atinja um público ainda mais expressivo. Começar pelo incêndio e todas as mortes que se sucederam é quase como “retirar o elefante da sala”. Afinal, é o grande atrativo, o que tornou o incidente tão único – e trágico. Porém, nos quatro capítulos seguintes há tempo suficiente para desenrolar os dez anos seguintes, período em que muito se falou, se protestou e prometeu, mas pouco se cumpriu. Passo a passo, vai se formando um retrato da injustiça e da frustração, que se por um lado poderia ser mais aprofundado e incisivo – como nos indícios de conivência do ministério público com as autoridades responsáveis por um controle que não foi feito – por outro é abrangente o suficiente para servir de indício do quão abissal é a desigualdade e a corrupção nesse país.
Cada segmento seguinte, portanto, se encarregará de uma etapa importante nesse processo. O Luto (episódio 2), A Culpa (episódio 3), O Processo (episódio 4) e Sem Fim (episódio 5) traçam uma linha da dor ao absurdo, revelando quão insólita tem sido a jornada destes familiares que, desde então, buscam apenas uma coisa: justiça. Do enfrentamento de uma realidade inacreditável – a morte dos seus filhos e irmãos – à busca pelos culpados que, intencionalmente ou não, teriam assumido a responsabilidade pela desgraça ocorrida, chega-se a uma passagem insólita: quando são os pais que passam a ser vistos como vilões e, numa virada tão surreal quanto ofensiva, se veem acusados por procuradores que teriam se sentido “ofendidos” quando os protestos pela demora nas investigações passaram de gabinetes e audiências fechadas ao âmbito das redes sociais e manifestações públicas. Ficou claro, com esse movimento, que não apenas aqueles que tanto sofriam estavam certos, como também que havia mais escondido além do que era exibido na superfície. Qualquer um que encarasse de forma séria esse caso poderia elencar dezenas de envolvidos com diferentes graus de culpabilidade. No entanto, no frigir dos ovos, apenas quatro indivíduos foram levados aos tribunais. E ainda desejavam escapar da emoção proporcionada apenas pela análise de um júri popular.
Se a premissa por si só é instigante – e necessária – a abordagem direta e sem desvios colabora no sentido de evitar sensacionalismos baratos e gratuitos. Por mais que alguns pais (verdadeiros) tenham se sentido ofendidos pela produção (principalmente por não terem sido consultados), a verdade é que essa é uma obra de ficção, e baseada em uma investigação prévia – o livro homônimo escrito por Daniela Arbex. Ou seja, os direitos foram negociados com a autora, e o que se vê na tela parte do volume por ela escrito. Assim, enquanto minissérie, é preciso reconhecer ainda o trabalho do elenco, que vão se participações de grande envolvimento (Thelmo Fernandes está gigante, indo da fragilidade à determinação como um dos pais mais comprometidos com a causa) a outras que mereciam ter sido mais bem dosadas (o sotaque de Pablo Sanábio está tão exagerado que chega a incomodar). Tanto como entretenimento, quanto como registro histórico, portanto, Todo Dia a Mesma Noite se confirma como um relato de um país sofrido que não pode – e nem merece – ser ignorado. O tempo passa, mas as feridas permanecem. E é a memória dos que resistem que mantém viva a luta de uma vida. Tanto dos que aqui estão, como também daqueles que já se foram.
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adorei!