Crítica
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Crítica
Vini trabalha numa companhia de teatro. Ele está investindo na carreira de ator, mas parece se dar melhor com tudo que não envolve a atuação em si, como a administração do espaço e gerenciando o café local. Assim como Maia, que vive no mundo das exatas. Trabalha em uma empresa de transporte por aplicativo, sempre atenta às novas ferramentas, implementando recursos e cuidando da tecnologia necessária para o bom funcionamento do serviço. Os dois moram juntos e são melhores amigos. Mas que ninguém se apresse em vê-los como um casal: afinal, assim como no norte-americano Will & Grace (1998-2020), ainda que ela seja heterossexual, ele é gay. E há ainda um terceiro elemento: Rafa, e prime do interior que veio para São Paulo em busca de mais oportunidades, de crescimento, de poder ser quem é de verdade. Essas três figuras formam o centro da ação percebida em Todxs Nós, seriado na HBO que mostra sua urgência não apenas pelo perfil dos seus protagonistas, mas também através dos acontecimentos que os ligam. E ainda que esse balanço entre um lado e outro não seja dos mais equilibrados, a empatia é tamanha que qualquer tropeço termina por ser facilmente relevado.
O primeiro dos oito episódios dessa temporada inaugural começa com a chegada de Rafa. Interpretada pela atriz Clara Gallo, Rafa nasceu Rafaela, mas agora, aos 18 anos de idade, se deu conta que não se encaixa à identidade correspondente ao seu sexo biológico. Mas também não sabe ao certo o quão confortável estaria se sua situação fosse inversa. Enquanto não se decide, anuncia uma decisão prática: seu gênero é não binário. Ou seja, um dia pode se sentir mais menina, mas no outro não lhe causará surpresa se agir como menino. Sua juventude, é preciso reconhecer, também está ao seu lado – tem tempo para se decidir, se é que um dia fará isso. O apoio que tanto necessita, e que falta enorme faz, é o do pai, Ulisses (Lourinelson Vladmir, preciso em levantar outro lado dessa moeda). Ele ama a filha, mas não aceita sua postura – que ele considera mera rebeldia adolescente. Em resposta, Rafa lhe diz: “eu estou aqui, e você só vai me perder se quiser”. Como deixou a casa da família no interior e foi para a capital, será fundamental a concordância dele, que aceita em lhe dar seis meses na ‘cidade grande’ para ver se consegue ‘se achar’. Enquanto isso, seguirá bancando seus custos.
Todo filho depende dos pais. Mas isso não pode implicar em desrespeito, nem de uma parte, muito menos da outra. Rafa quer fazer apenas o que lhe dá na telha, e se revolta com qualquer um que se manifeste em contrário. Ao mesmo tempo, espera que o primo e a amiga aceitem sua presença no sofá da casa deles, assim como conta que o pai pagará todas as contas. Essa falta de noção é fundamental para a personagem, pois, em grande parte, ela também está presente em cada um da audiência, a quem talvez a realidade que Rafa representa esteja ainda distante. O processo de aprendizado da personagem é também vivido pelo espectador. E se isso transforma a narrativa por vezes um tanto cansativa, com diálogos muito expositivos e outros exageradamente didáticos, a estrutura de episódios com no máximo 30 minutos de duração, que alternam bastante entre o romântico e o sexy, o cômico e o dramático, colaboram para uma melhor fluidez da narrativa.
Enquanto Rafa vai aprendendo na pele como ser adulte em um mundo que não está pronto – e, muitas vezes, nem parece disposto – a recebê-le, seus dois colegas de apartamento também tem seus problemas com os quais lidar. Vini (Kelner Macêdo, criando empatia numa construção que tinha tudo para resvalar no estereótipo) é o eterno insatisfeito: não gosta do trabalho, reclama da mãe (Gilda Nomacce, em participação mínima), vive implicando com o namorado (Felipe Frazão, de Minha Fama de Mau, 2018) e não sabe como lidar quando começa a ser assediado pelo galã da novela (Lucas Drummond, de O Paciente, 2018). Maia (Juliana Gerais, de Selvagem, 2019, alternando com eficiência uma delicadeza que lhe é natural com a fúria de quem luta pelo que lhe é devido), ao mesmo tempo em que tenta criar para si um ambiente de trabalho justo e receptivo às mais diversas vozes, flerta com um rapaz comprometido e volta e meia se vê entre o discurso e a prática, a teoria que tanto admira e as ações que estão ao seu alcance.
Talvez por isso Maia seja uma personagem tão rica. Afinal, é ela que vai de encontro com concepções arraigadas, como a lei do mercado, o atendimento das maiorias em detrimento das minorias, e não sem descanso se vê tendo que enfrentar outras questões, como feminismo e negritude. No trabalho, quando surge uma denúncia de assédio, qual jogo ela irá fazer? O do patrão, que é quem paga seu salário, ou da vítima, que está em sintonia com sua consciência? Tal postura, obviamente, não é privilégio apenas dela. Vini se sente atraído pelo recém-chegado, mas sempre pregou a monogamia. Quando o próprio namorado sugere um encontro sexual a três, como ele deve agir? Embarcar na ideia e aproveitar o momento, ou ser fiel ao que acredita? Assim como Rafa, que prega liberdade, mas acaba agindo exatamente como aqueles que tanto critica. Cada um deles, a seu modo, irá pagar por suas decisões, e nem sempre os preços que lhes serão exigidos será justo.
Concebida a partir dos esforços mútuos de Vera Egito, Daniel Ribeiro e Heitor Dhalia, três cineastas representativos e bastante ativos no atual cinema brasileiro, Todxs Nós levanta muitas bandeiras em pouco espaço de tempo – o que, obviamente, não lhe dá oportunidades suficientes para que todas sejam aprofundadas na medida que se poderia esperar. No entanto, mais do que os eventos que ilustra, estão nos seus três personagens principais o maior mérito do programa. Rafa, Vini e Maia são seres reais, identificáveis e fáceis de se relacionar, por mais problemáticos que sejam nas suas histórias – afinal, eles também estão aprendendo, e nesse processo, tanto o erro, quanto o acerto, é natural. Eles caem a todo instante, mas o melhor é que nunca se cansam de levantar, e de novo, e de novo. Assim, não apenas dão o exemplo, como também vão adiante, servindo de espelho para um país – o Brasil – que, por mais doente que esteja em 2020, ainda tem muito o que oferecer.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 7 |
Daniel Oliveira | 7 |
MÉDIA | 7 |