Crítica


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Sinopse

A misteriosa morte de Laura Palmer na pacata cidade de Twin Peaks dá início a uma série de problemas ao agente do FBI Dale Cooper e ao xerife Harry Truman. Eles são os responsáveis pela investigação do crime e acabam percebendo que várias pessoas da cidade estão envolvidas e que segredos obscuros estão por trás do caso.

Crítica

A geração atual está devidamente habituada a acompanhar ótimas – eventualmente excepcionais – séries de televisão, muito por conta da transformação do meio num terreno extremamente fértil para projetos cada vez mais interessantes, nos quais os riscos se tornam matéria-prima de excelência. Nem sempre foi assim. Twin Peaks, seriado capitaneado pelo cineasta David Lynch e por seu parceiro na ocasião, Mark Frost, foi uma espécie de divisor de águas quando lançado nos agora longínquos anos 90. O público certamente não estava acostumado àquele tipo de experiência em frente à telinha. A TV possuía complexidades contingenciais em projetos serializados. Era um mercado em que esporadicamente surgia algo de qualidade destacada. Mas, para a surpresa de muitos, “Quem Matou Laura Palmer?” virou pergunta recorrente, uma propriedade do imaginário coletivo, assim como as pessoas e as situações que movimentaram a pequena localidade do interior dos Estados Unidos por duas temporadas, a primeira com oito e a segunda com 22 episódios. Personalidade e originalidade são os signos regentes do enredo passado na cidadezinha com 51.201 habitantes, onde as corujas não são o que parecem e o fogo caminha com os residentes da bruma e da escuridão.

A morte da linda Laura Palmer (Sheryl Lee), cujo corpo é encontrado envolto em plástico, boiando no rio, numa imagem rapidamente tornada icônica, desencadeia uma série de eventos que mostram o lugar como um inusitado depósito de segredos, intrigas e mistérios, elementos dissociados, num primeiro momento, de suas vistosas paisagens, repletas de bosques e charme rústico. Esse é um conceito recorrente na filmografia de David Lynch, como visto, principalmente, no longa-metragem Veludo Azul (1986), no qual também se acessava o subterrâneo sórdido de um interior aparentemente pacato e ordenado. O agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) desembarca nesse cenário idílico, porém machucado, para investigar a morte da jovem, e acaba se afeiçoando às pessoas, ao clima campestre e aos donuts que adoçam os interlúdios dos processos investigativos. Cooper é um sujeito carismático, visto com os semelhantes estranhamento e simpatia fraternal com que encaramos, por exemplo, a senhora dada a andar embalando e trocando ideias com um tronco. Aliás, um dos grandes méritos de Twin Peaks está na exímia construção dos personagens, atenta às minúcias e, ao mesmo tempo, preocupada em encaixar as singularidades num mosaico maior.

Conduzidos pela indefectível trilha de Angelo Badalamenti, caracterizada por melodias marcantes, sons estranhos e soturnos, somos levados a mergulhar nessa coletividade que, a despeito de estar inserida numa comunidade diminuta, possui as mesmas pragas cotidianas que tornam irremediavelmente enfermas as metrópoles. Ou até mais. A autoralidade de David Lynch é evidente. Sua condução, propícia ao clima instaurado entre o surreal e o abstrato, é facilmente percebida, pois impregnada na atmosfera, nos componentes insólitos, na assimilação do incomum pelos locais, na maneira cotidiana de lidar com anões que dançam, gigantes mensageiros e entidades maldosas vindas de planos desconhecidos. O bizarro é apenas um dos convivas em Twin Peaks. O humor também se esgueira e ganha os holofotes de vez em quando, nem sempre na condição de alívio, como poderia se esperar, mas para reforçar o caráter absurdo de tudo o que acontece. Torcer para que o policial Andy (Harry Goaz) se acerte com sua amada, Lucy (Kimmy Robertson), não significa nos distanciamos da essência, pelo contrário, já que naquela cidade o prosaico e o extraordinário se alternam constantemente.

Nesta primeira temporada de Twin Peaks se instaura um paradoxo curioso, basilar à narrativa. Embora, a priori, não se espere a existência tão marcada do estranho no cotidiano de uma cidadezinha pacata como a que dá nome à série, ocorrências anormais são encaradas pelos moradores como circunstâncias absolutamente corriqueiras, vide as visões da Sra. do Tronco (Catherine Coulson), prontamente entendidas como possíveis antevisões do futuro, inclusive pelo policial Hawk (Michael Horse), indígena que constantemente acessa a sapiência do povo nativo americano para ajudar na solução dos mistérios. De maneira semelhante, Cooper entende o sonho como uma pista capital para entender melhor o encadeamento dos eventos que levaram ao brutal assassinato da jovem Laura Palmer. Intrigas empresariais, como a que envolve o incêndio criminoso na serraria a fim de tornar o terreno disponível para um empreendimento imobiliário, adicionam camadas não apenas à trama, mas substanciam os personagens, levando-os a expressar seus lados mais escuros, como bem convém ao ímpeto criativo de Lynch, cuja capacidade de gerar atmosferas é absolutamente fascinante e aqui se mostra não domesticada pela televisão, mas prontamente disposta a abalar as estruturas desse meio de massa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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