Crítica
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Crítica
O anúncio da terceira temporada de Twin Peaks, uma das séries mais importantes da televisão norte-americana, foi, no mínimo, duplamente impactante. Primeiro, se tratava da continuação de um programa vanguardista, sobretudo à valorização da TV como meio propício a conteúdos serializados relevantes – algo indiscutível hoje em dia, mas impensável anos atrás. Segundo, representava a volta de David Lynch, que não filmava desde Império dos Sonhos (2006), seu último longa-metragem lançado. Para quem assistiu aos dois anos anteriores da atração que girou em torno da icônica pergunta “quem matou Laura Palmer?”, sobravam questionamentos, especialmente com relação ao destino do agente Dale Copper (Kyle MacLachlan, brilhante), tomado pela alma penada, ou algo que a valha, chamada Bob (Frank Silva), uma personificação do mal que provocara a tragédia dos Palmer, entre outras coisas. Pois bem, cumprindo a promessa de Laura (Sheryl Lee), feita em pleno Black Lodge, de um reencontro após 25 anos, Lynch dirigiu uma empreitada hercúlea de 18 episódios, de cerca de uma hora cada, não sem possibilitar novos caminhos, ou seja, oferecendo um espetáculo tão enigmático quanto instigante, criando outro marco da telinha mundial, celebrado como merece.
Ao invés de nos jogar num terreno estritamente conhecido, tratando de nos confortar enquanto espectadores ambientados, David Lynch faz jus à sua inclinação inovadora, permitindo a erupção de múltiplas estranhezas – como se as existentes já não fossem suficientes – para balizar já os primeiros episódios. Cooper está preso no Black Lodge. A dinâmica dele com um velho conhecido, cujo membro faltante se apresenta agora na forma de uma bizarra árvore-cabeçuda-falante, dá o tom da terceira temporada. O realizador mescla hábil e expressivamente a nostalgia do retorno com uma necessidade de expansão da mitologia existente. Assim, enquanto testemunhamos o nascimento de um Cooper maligno, arremessado na realidade, afeito a brutalidades, o nosso querido agente boa-praça é devolvido ao plano material com um tipo de avaria. Esse homem do FBI age como autômato defeituoso, mal conseguindo interagir socialmente, sendo levado à convivência com a família anteriormente constituída por uma espécie de duplo seu, fruto de desígnios misteriosos. Naomi Watts interpreta a mulher de Doug, o homem que evanesce para dar lugar ao protagonista desmemoriado, cujo destino vai sendo traçado por forças ocultas que o guiam.
Aliás, uma das grandes sacadas da terceira temporada de Twin Peaks é manter em alta esse suspense em torno da possibilidade de Cooper recobrar a memória. Sua relação com os demais personagens é marcada por boas doses de humor, afinal de contas é deliberadamente ridícula a convivência tanto doméstica quanto laboral. Praticamente catatônico, balbuciando palavras como uma criança que necessita, aos poucos, aprender novamente a se comunicar, ele consegue proezas impressionantes. Como esquecer-se dele jogando em Las Vegas, quebrando a banca, gritando “HELOOOOO”? Outro ponto prontamente destacável, agora na estrutura dos episódios, é o encerramento com números musicais no palco do Bang Bang Bar –o título de melhor deles fica entre a apresentação fantasmagórica do Nine Inch Nails e o lindo revival proporcionado pela presença de Rebekah Del Rio, a mesma que canta Llorando em Cidade dos Sonhos (2001). Figuras conhecidas como o Dr. Jacoby (Russ Tamblyn) aparecem em novos contextos. Ele profere discursos motivacionais e vende pás tingidas de ouro (!?). Bobby Brigs (Dana Ashbrook), antes um delinquente juvenil, agora é policial. Margaret (Catherine E. Colson, falecida durante as filmagens), reprisa o marcante e vital papel da senhora do tronco.
A terceira temporada de Twin Peaks ainda tem muitos personagens secundários, alguns novos, outros velhos conhecidos de quem é fã da criação de David Lynch e Mark Frost. Todavia, não é necessariamente o comportamento das pessoas que sobressai aqui, mas a construção totalmente instigante de situações aparentemente desconexas, mas que vão se imiscuindo insuspeita e sorrateiramente. O tão falado oitavo episódio, Gotta Light?, representa uma sensível transposição de barreiras, pois é, sem dúvida, um dos mais corajosos eventos aos quais a televisão se permitiu em muito tempo. O doppelgänger de Cooper é salvo por figuras repugnantes; há a detonação de uma bomba atômica no Novo México (que cena linda); glóbulos manifestam o rosto de Bob, orbes ostentam o semblante de Laura Palmer; o gigante observa tudo, nos desafiando a estabelecer conexões, inclusive com suas participações nas temporadas anteriores. Em suma, é um novo marco televisivo que se delineia em preto e branco e, como de costume na obra de Lynch, com um desenho sonoro primoroso. Em meio a fluxos superficialmente incongruentes, finalmente temos corporificada a famosa Diane (Laura Dern), aquela a quem Cooper se dirigia por meio do gravador nos dois primeiros anos.
Enquanto alimenta jocosamente a expectativa quanto à possibilidade de um "despertar" de Cooper, atiçando-nos, por exemplo, assim que ele se vê estimulado pelo contato com o seu tão estimado café, David Lynch gradativamente reconfigura a mitologia anteriormente criada, mergulhando num poço ainda mais abstrato de conceitos como os Lodges, tanto o black quanto o white, respectivamente lugares de maldade e bondade, sem com isso atrelá-los a um espectro religioso ou a algo que o valha. O núcleo do FBI, que conta com o próprio Lynch de volta na pele do carismático Gordon Cole, Miguel Ferrer, reprisando a atuação como o turrão Albert, e a inclusão de Chrysta Bell, como a eficiente e voluptuosa Tammy, permite o acesso a determinadas pistas, inclusive as que permitem uma ponte direta entre a série de TV e o longa-metragem dela derivado, Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992). Das duas, uma: ou o cineasta tinha certas coisas planejadas há quase trinta anos para uma sequência ou soube magistralmente aproveitar determinados ganchos deixados outrora para a construção de novos caminhos, vide o desdobramento que ele dá ao personagem de David Bowie, imprescindível nessa trama cada vez mais obscura que envolve doppelgängers, bem e mal.
Há espaço, inclusive, para resoluções há muito aguardadas pelos fãs, como o desenlace do imbróglio sentimental envolvendo Norma (Peggy Lipton) e Big Ed (Everett McGill). Boa parte dos habitantes antigos de Twin Peaks retorna à cena, com maior ou menor importância. Até a lindíssima Audrey Horne (Sherilyn Fenn) dá as caras, num contexto completamente diferente de antes. Em suma, a terceira temporada de Twin Peaks é um acontecimento ímpar, que pode ter passado despercebido pelas massas, mas não pelo público que busca ser instigado. Dentro da carreira de David Lynch, no que tange à abordagem, dá para dizer que os dois primeiros anos estão para Veludo Azul (1986) e Coração Selvagem (1990), assim como este terceiro está para A Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos. Reforçando a autoralidade de Lynch, há a utilização absolutamente expressiva de efeitos especiais oriundos de técnicas artísticas plásticas, o que confere um efeito singular a aparições, distorções, criaturas e toda sorte de bizarrices que habitam a pequena cidade norte-americana. Aliás, na nova leva de episódios, o olhar investigativo se espraia a outros rincões, não desvirtuando o resultado do original, mas o ampliando organicamente, direto ao panteão das obras-primas.
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