Crítica


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Sinopse

Diante de uma rotina marcada por violência e corrupção, diversos moradores do subúrbio carioca lutam para sobreviver com dignidade, principalmente frente aos desmandos das milícias. Após a morte do Seu Chapa, o então policial Quirino passa a controlar o tráfico. No meio disso está Penha, viúva do ex-mandatário local.

Crítica

A narrativa se inicia com um flashback. “10 anos antes”, informa o letreiro. Ora, dez anos antes do quê? Enquanto não estabelece a narrativa dos dias de hoje, o catártico assassinato se converte em tempo presente aos olhos do espectador. Um Dia Qualquer possui uma temporalidade particular. A narrativa efetua saltos constantes entre um único dia atual, dividido em cinco partes (“manhã”, “tarde”, “madrugada” etc.) e este período vago e fluido de uma década atrás. O dia escolhido para a atualidade consiste na primeira data pós-Carnaval, no entanto, apesar de belamente produzida, a festividade de rua não surte impacto significativo na narrativa. Por que, então, condicionar a história à proximidade do feriado? Neste vácuo de dez anos, Penha (Mariana Nunes) transforma-se completamente, em termos de aparência e comportamento. Quirino (Augusto Madeira) transforma-se discretamente; já Seu Chapa (Jefferson Brasil) e Maciel (Vinícius de Oliveira) não sofrem transformação alguma. A grande amizade entre Quirino e Seu Chapa se converte em rivalidade devido ao amor pela mesma mulher, porém o espectador nunca enxerga os vínculos afetivos de ambos no passado. O tempo flui de maneira curiosa para os personagens e para o espectador.

O projeto possui as melhores intenções. Poucos filmes e séries se arriscam a determinar os laços íntimos entre política partidária, milícias, tráfico de drogas e igrejas. Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010) foram tão amados quanto odiados por estabelecerem estes vínculos. Agora, Pedro von Krüger, que trabalhou na equipe de câmera dos dois filmes da saga policial, efetua a seu próprio retrato das relações promíscuas entre o Estado e o crime organizado. No entanto, a estrutura da série não facilita a tarefa. Trata-se de cinco episódios de cerca de 25 minutos cada, buscando saltar entre diversos grupos sociais, em momentos distintos. O resultado é uma representação metonímica: Quirino precisa interpretar sozinho toda a milícia, visto que o companheiro Maciel não possui conflitos próprios. Seu Chapa, por sua vez, compõe o retrato de todo o tráfico de drogas e da favela inteira. Uma belíssima caminhada de Penha pelas ruas da comunidade, com a câmera acompanhando a personagem, constitui a exceção que confirma a regra: seja por questões de produção ou escolha artística, cada setor é resumido a um ou dois personagens, geralmente presos dentro de suas casas. Os espaços fora dos templos, bocas e residências tornam-se secundários.

Consequentemente, o retrato resvala na caricatura dos grupos representados. Sem dúvida, existem no Rio de Janeiro traficantes como Seu Chapa e milicianos como Quirino. No entanto, quando estes se tornam a única realidade visível, eles se convertem numa simplificação excessiva das características de cada setor. O traficante se comunica com muita marra, gírias em cada frase, pesados cordões de ouro em volta do pescoço. Os poucos colegas de uma festa vazia e silenciosa elevam suas metralhadoras ao alto, porque este seria o imaginário comum acerca do banditismo. Estariam comemorando alguma coisa? Não se sabe. Seu Chapa é um traficante que não vemos traficando: ele passa os dias sentado em sua boca. Quirino fala grosso e caminha com aspecto autoritário, mas não o vemos coletando o dinheiro da “proteção”, não percebemos de onde vem a sua autoridade, nem como conseguiu mantê-la ao longo de mais de uma década. Penha sofre uma transformação drástica, e teria sido fascinante descobrir como a personagem passa da configuração de “mulher de traficante” a uma religiosa devota. Porém, a guinada não ocorre diante dos nossos olhos. Chegamos à trama quando as funções de cada personagem estão bem estabelecidas, cabendo a cada um representar o seu tipo: o traficante, o miliciano, a “mulher de malandro”, a ninfeta que faz sexo com o enteado.

Os diálogos complicam ainda mais o retrato social. Um Dia Qualquer demonstra apreço por frases de efeito, a exemplo xingamentos de boca cheia que encerram a trama num momento “de impacto”. “A vida é assim: a gente nasce para se fuder”, dispara um personagem. Encerra-se o episódio. “É nóis que tá nessa porra!”, grita o outro, e a montagem corta no momento “solene”, como se esta cena merecesse alguma reflexão do espectador. As conversas pulam do choque à explicação excessiva, quando dois personagens falam sobre instantes que ambos conhecem muito bem, apenas para explicar ao espectador. “Na época do teu pai, aquele traficante vagabundo de merda!”. “Tu é garoto novo no crime mesmo, né, Thundercat?”. “Há quanto tempo a gente trabalha junto? Dez anos?”. Quirino e Maciel conversam sobre o dono de um bar. Eles relatam um ao outro o episódio fresco na memória de ambos, completando as frases alheias. O efeito se torna bastante artificial. O projeto aposta demais no imaginário cristalizado da criminalidade, reproduzindo chavões do crime-espetáculo suficientemente questionados pelo menos desde Cidade de Deus (2002). A transformação da marginalidade em algo divertido, empolgante e repleto de instantes de grande impacto serve a fetichizar a violência que os criadores buscam denunciar.

O elenco demonstra comprometimento com o material. Augusto Madeira constitui um dos melhores atores em atividade no cinema e na televisão brasileira, desempenhando com excelência a comédia, o drama e o suspense, saltando com igual desenvoltura entre Ruy Guerra e Globo Filmes. Mariana Nunes possui uma variedade preciosa de registros, e se mostra confortável com a sua personagem no passado. Mas como aprofundarem interações tão limitadas ao lugar-comum? Pobre Tainá Medina, atriz talentosa que tem despontado com rapidez, reduzida ao fetiche do olhar masculino (vide a triste pose “sensual” com o dedinho na boca no material de divulgação). A cena envolvendo um revólver e sexo oral talvez se considere feminista pelo fato de a mulher determinar seu próprio prazer sexual, porém corresponde a um fetiche tipicamente masculino. Não há saída: as mulheres estão reduzidas a dicotomias (santa-prostituta, passiva-histérica), enquanto os homens negros são favelados e marrentos. Quando militantes e críticos de cinema reclamam da falta de roteiristas mulheres e negro(a)s, não o fazem apenas para garantir que estes grupos desprivilegiados tenham as devidas oportunidades de emprego – ainda que este constitua um fator essencial. No entanto, uma presença maior de escritores negros e escritoras mulheres certamente retiraria Seu Chapa e Bruna de um lugar tão reducionista. Não por acaso, Jéssica (Eli Ferreira), uma das personagens com maior potencial para fugir aos clichês, é a figura mais subaproveitada pela trama.

Outras questões poderiam ser levantadas: os sotaques inconsistentes dos personagens cariocas da mesma região, a cena de sexo que termina com o rapaz imediatamente usando cuecas após o orgasmo, enquanto a mulher recebe um close fetichista no mamilo e na gota de suor escorrendo pelo corpo azul-alaranjado, a edição de som pouco naturalista dentro da igreja evangélica, os sons artificiais do bebê etc. Falta polimento de direção, roteiro e produção aos episódios, que ficam aquém do nível estabelecido pelas melhores obras brasileiras destinadas à televisão e ao streaming. Sobretudo, ressente-se o aprofundamento na importantíssima relação entre forças legais e ilegais no Rio de Janeiro, e no Brasil inteiro, por extensão. Apesar do belo final, tão trágico quanto irônico, a primeira temporada de Um Dia Qualquer se limita à constatação deste funcionamento. Mas que forças o testam? Como ele se constitui, de que maneira se torna mais ou menos violento, como a Igreja tenta roubar o protagonismo político das milícias, e de que maneira estas reagem? Na dinâmica entre grupos, espaços e tempos se desenharia uma representação sociológica complexa, ao invés do olhar estanque a uma boca de fumo, uma igreja etc. O projeto constrói elementos de sobra para uma segunda temporada, no entanto, a série ganharia ao transitar pela fronteira entre estes mundos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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