Crítica


5

Leitores


2 votos 5

Sinopse

Um DJ famoso na Inglaterra desaparece em Ibiza. Vinte anos depois, seu cadáver é encontrado. A irmã do morto retorna à ilha para investigar o mistério e mergulha num mundo de clubes noturnos, mentiras e dissimulações.

Crítica

O sucesso estrondoso de La Casa de Papel (2017-) fez do espanhol Álex Pina um nome em ascensão no cenário global do entretenimento audiovisual. O êxito da trama envolvendo um assalto mirabolante, realizado por indivíduos de codinomes peculiares, não ficou restrito à Espanha, principalmente por conta da distribuição e posterior coprodução da Netflix. Os detratores do programa, porém, o acusam de ser excessivamente folhetinesco, um novelão repleto de acontecimentos supostamente eletrizantes, boas doses de superficialidade quanto aos personagens, pitadas desbragadas de melodrama e ganchos para manter a atenção do espectador. É mais ou menos nessa toada que aparece agora White Lines, a nova aposta do criador nessa pegada serializada e chancelada pela gigante do streaming. Nesse caso, o mote utilizado, também próprio ao folhetim, é o bom e surrado whodunit, ou o “quem matou”. O grande mistério da primeira temporada ambientada num cenário paradisíaco, de visual estonteante, é quem assassinou o lendário DJ Axel Colins (Tom Rhys Harries).

A protagonista é Zoe (Laura Haddock), inglesa que ruma à Ibiza tão logo seja informada da possível descoberta do cadáver do irmão desaparecido há 20 anos. Ela é desenhada em White Lines como alguém determinantemente marcada por esse episódio até então insondável, igualmente perturbada pela possibilidade de, enfim, saber que o sumiço foi ocasionado realmente por morte. Desde o começo da série fica evidente que os responsáveis criativos vão pegar caminhos relativamente fáceis sempre que a situação ameaçar flertar com algo de maior complexidade. Nesse movimento, ocasionalmente descartam os aprofundamentos em função do compromisso com certas convenções. Pois, em que outra dinâmica narrativa um leão-de-chácara temível como Boxer (Nuno Lopes) sairia rindo do hospital após ter sido alvejado por uma desconhecida? Esse coadjuvante importante é o personagem mais carismático da série, aquele de quem frequentemente nos é sugerido gostar. Brutamontes que vai paulatinamente revelando o lado sensível e vulnerável, ele é constantemente sabotado.

Àlex de Pina prefere, por exemplo, incorrer numa cena repleta de lugares-comuns – como o troglodita que assiste a filmes da Nouvelle Vague (de óculos) e pinta nas horas vagas, entre um serviço sujo e outro –, do que permiti-lo externar de que materiais é feita sua personalidade. Em White Lines tudo o que poderia ganhar matizes acaba recebendo um polimento que embaralha acessibilidade e debilidade. Para cada sequência bonita, como a do pai turrão que reconhece aos prantos sua insuspeita semelhança com o filho autodestrutivo, há outras tantas de gosto duvidoso, vide aquela em que um suspeito é torturado com caixas de som no último volume. Para cada possibilidade instigante, como a construção de Zoe com base no contraste visual entre a cinzenta Manchester e a ensolarada Ibiza, há coisas beirando o constrangedor, como as oposições óbvias entre a estabilidade do marido e a intensidade do amante. São tantas as subtramas circundando a busca da protagonista que fica difícil deter-se numa. Como em algumas novelas, tudo importa, mas nada importa tanto.

Claro que não poderia faltar tensões num clã multimilionário, com direito a ressentimentos asfixiados e a rivalidade com outro tão poderoso e escuso quanto. Ao largo da jornada de Zoe, que logo percebe-se existencial, o chefe mor da ilha revela desgosto por conta da mulher adúltera; esta claramente manipula todos ao seu bel prazer; o filho oscila entre a mão firme de administrador e os próprios fantasmas; isso enquanto a filha egressa dos Estados Unidos aparece como um elo displicente. Dentro dessa lógica de exageros, que atravessa White Lines quase integralmente, não basta aludir a uma lógica edipiana, é preciso montar uma reunião para vomitar desejos incestuosos. Há pouco na série para ser percebido nas entrelinhas, uma vez que as pessoas parecem sempre dispostas, uma hora ou outra, a verbalizar tudo o que sentem e pensam. Além disso, num processo de óbvia transformação, a protagonista fica em vários instantes à mercê do julgamento do espectador, pois intempestiva e instável ao ponto de ser indecorosa com o sujeito desenhado para ser legal.

White Lines prende a atenção, não é enfadonho. Os personagens são bem interpretados dentro dessa conjuntura novelesca, com acontecimentos vistosos deixando poucas marcas notáveis. Ibiza é entendida como um lugar hedonista, onde sexo, drogas e música são combustíveis do cotidiano. Nela, Zoe vai se desconstruindo, deixando para trás a memória idealizada do irmão à medida que é confrontada por sua faceta destrutiva. Mas, para cada boa ideia e/ou sacada do roteiro, há umas tantas conveniências que tratam de jogar tudo num terreno palatável. A amizade dos jovens que saíram da Inglaterra para conquistar o paraíso dá muito pano para manga, num jogo de conjugar fascínio e repulsa. Em instantes esparsos, Álex Pina passa muito perto de escrutinar melhor a sua premissa potente. Porém, ele prefere investir de modo epidérmico nos dramas, deixando escapar boa parte das aberturas para fazer de sua série um folhetim de 10 capítulos, cujo encerramento prepara à segunda temporada, mas também não crava isso. O sucesso (ou não) falará mais alto.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.