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Sinopse

No século 17, o marinheiro inglês John Blackthorne passa de forasteiro a samurai no território japonês enquanto é utilizado como peão num jogo político pelo suserano Toranaga que deseja se transformar na liderança máxima do país do sol nascente.

Crítica

Baseado no best-seller homônimo de James Clavell, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão é uma minissérie ambientada nos anos 1600, época turbulenta na história japonesa. O protagonista é um estrangeiro, o britânico John Blackthorne (Cosmo Jarvis), que naufraga perto do litoral japonês e é envolvido numa guerra por poder. Depois da morte do grande mandatário nipônico, seu herdeiro imediato ainda é jovem demais para assumir a liderança do país, então os suseranos que formavam um conselho de regentes começam a entrar em conflitos políticos/bélicos para decidir quem deverá governar provisoriamente (ou definitivamente, pois será difícil destituir qualquer um alçado ao posto). De um lado, Toranaga (Hiroyuki Sanada), ao qual o forasteiro se alia por força das circunstâncias. Do outro, o ladino Ishido (Takehiro Hira), senhor feudal que não mede esforços e conspirações rumo a esse poder tão almejado. Os criadores da minissérie optam por se focar justamente nos joguetes reais, nas intrigas palacianas que acabam definindo a disputa bem mais do que qualquer evento épico em campo de batalha. No centro de tudo isso, Blackthorne chamado de Anjin-sama, honrado com o posto respeitável de hatamoto de Toranaga – servo leal e direto de um senhor feudal –, se envolve amorosamente com sua tradutora, Mariko (Anna Sawai), japonesa cristã que fala português assim como o britânico adotado por seu líder.

Em Xógum: A Gloriosa Saga do Japão, a presença dos portugueses no país é muito importante, especialmente como disseminadores da doutrina cristã que visa colonizar religiosamente o país aos poucos (como foi feito em tantos outros territórios fora da Europa). Mas, provavelmente por uma concessão comercial, os personagens não falam português como língua alternativa ao idioma nativo, mas inglês, mesmo que mencionem estar conversando na língua latina. Nada que comprometa o resultado ou ofenda gravemente a dimensão histórica da trama. Aliás, alguns fatos verídicos são mencionados fielmente – como o avanço de Portugal além-mar depois do famigerado Tratado de Tordesilhas, acordo firmado entre Portugal e Espanha, em 1494, que dividiu o mundo entre os dois reinos ibéricos. Porém, o programa não persegue estritamente a fidelidade histórica, ainda que seja possível fazer links entre seus acontecimentos e o panorama verídico do período citado. O programa atrela os obstáculos culturais e morais que impedem Anjin e Mariko de vivenciar o amor crescente (sentido mutuamente) com disputas estratégicas que definem os rumos do Japão. Em alguns capítulos, o aspecto romântico se torna o principal elemento, especialmente, vide o foco nos dilemas de Mariko entre o dever como tradutora e o coração. Em outros, todas as atenções se voltam aos planos de Toranaga à vitória improvável.

Então, a minissérie não saciará os sedentos por grandes batalhas ou lutas empolgantes entre os icônicos samurais. Xógum: A Gloriosa Saga do Japão é bem mais um drama romântico e político do que necessariamente uma trama épica de ação. Quando seus primeiros episódios foram ao ar, muitos a compararam a Game of Thrones (2011-2019), talvez por conta da grandiosidade dos cenários e das intrigas palacianas ferrenhas. Porém, enquanto o programa baseado no livro de George R.R. Martin tem uma vocação para as cenas grandiosas de ação, com vilões terríveis movimentando exércitos por um mapa convulsionado pela disputa de poder (outra semelhança entre as séries), a baseada nos escritos de James Clavell é muito mais interessada pelas impossibilidades vividas por cada personagem, atenta ao fardo carregado individualmente pelas pessoas fundamentais ao futuro de uma nação. Toranaga é o regente que precisa ser ora flexível, ora rígido para manter aliados, inimigos e traidores muito bem-posicionados em seu tabuleiro estratégico. Mariko é a mulher fiel aos preceitos da honradez samurai, apaixonada por um estrangeiro, mas presa ao compromisso com o marido agressivo que utiliza a sua descendência como argumento de submissão. Já Anjin, aquele que enxerga esse mundo solene com um misto de espanto e admiração, vai se adequando por necessidade ao estilo de vida bastante diferente.

Xógum: A Gloriosa Saga do Japão dispõe de tempo para os personagens se desenvolverem, associando bem as questões individuais a fim de construir um panorama político/emocional interessante. Exemplo de como a ação é tratada na minissérie (suporte às batalhas internas), são as cenas mais sanguinolentas e brutais. Elas não existem como ocasiões espetaculares, pois são encaradas como manifestações extremas de condutas humanas, passos estratégicos durante uma guerra ou mesmo indícios de falhas de julgamento. Quando um jovem ordena a execução do mensageiro do inimigo, as vísceras expostas da vítima servem como reforço da imprudência juvenil que, por associação, ilumina a prudência dos samurais e nobres mais experientes. É esse tipo de consistência que transforma a minissérie num programa de muito valor. Além disso, há uma notável sofisticação visual, fruto dos figurinos e dos demais elementos da direção de arte, mas também da composição fotográfica que geralmente utiliza os tons frios para registrar essas guerras internas e externas. Quanto ao elenco, os grandes destaques são Hiroyuki Sanada e Anna Sawai. Ele como o regente mais apto a ser imperador, porém rechaçado por seus pares, um homem disposto a sacrifícios inomináveis pelo bem comum. Ela como a tradutora apaixonada pelo estrangeiro, mas sobretudo sufocada pelo peso da herança acrescido de pressões sociais exercidas sobre a mulher. Cosmo Jarvis está bem, mas desempenha um papel menos complexo.

A influência da Igreja Católica como braço de dominação português em território japonês é um aspecto do drama que acaba ficando um pouco em segundo plano, principalmente quando Toranaga se refugia num feudo de pescadores liderados por Yabushige (Tadanobu Asano, outro destaque positivo do elenco). No começo parece que as artimanhas dos religiosos serão peças fundamentais nesse jogo político que sempre ameaça descambar numa guerra sangrenta. Contudo, os portugueses praticamente somem da minissérie a partir do citado momento de refúgio, regressando pontualmente nos episódios finais para reafirmar essa relevância política. Algumas subtramas também são um pouco manjadas demais, como o desaparecimento em batalha de Buntaro (Shinnosuke Abe), o agressivo marido de Mariko, portanto, um dos maiores empecilhos entre o amor dela por Anjin. É bastante previsível que um retorno está no horizonte da série para inserir tensão e impossibilidade ao romance principal. Mesmo com esses senões, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão é bem-sucedida naquilo que se propõe: contar a história grandiosa de ascensão enquanto desenha o amor improvável nascendo em meio a terremotos. De certa forma, ela nos convida à contemplação, a não esperar que tudo se resolva de modo catártico num campo de batalha com homens e mulheres virando guerreiros. A isso ela prefere se focar nas pequenas/grandes guerras que esses corpos e mentes estão travando internamente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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