Ainda que esteja assinado apenas o seu segundo longa-metragem como diretor, o pernambucano Hilton Lacerda é um dos nomes mais influentes do atual cinema brasileiro. Nascido em Recife em 1965, chegou a frequentar os cursos de Jornalismo e de Educação Artística, porém não concluiu nenhuma das duas faculdades. Seu aprendizado veio da prática, e a estreia no cinema foi como assistente de direção no curta O Crime da Imagem (1988), de Lírio Ferreira. Quase uma década depois estreava como roteirista de Baile Perfumado (1997), longa que marcou época como farol de um novo cinema nordestino. Entre seus prêmios, contam estatuetas conquistadas nos festivais do Ceará, de Cuiabá e de Recife, além da recente vitória no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – o Oscar nacional – pelo roteiro de Febre do Rato (2011). Após dar seu primeiro passo como realizador com o documentário musical Cartola: Música para os Olhos (2007), Lacerda voltou para trás das câmeras neste ano com seu projeto mais ambicioso e, ao mesmo tempo, mais pessoal: o aclamado Tatuagem, vencedor dos últimos festivais do Rio e de Gramado. E foi durante sua passagem pelo sul do Brasil que o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o cineasta. Confira!
De onde veio a inspiração para a história de Tatuagem? O que lhe motivou?
Tatuagem é resultado de um monte de ideias que estavam nascendo ao mesmo tempo. Tudo começou quando decidi investir em um projeto pessoal que contava com um personagem de Recife chamado Luiz de Brito. Ele é agitador cultural, foi Secretário de Cultura, é meio que um tropicalista local. Também tem a obra de Cícero Dias. Queria muito fazer um filme que tivesse alguma coisa relacionada com esse universo de zona da mata. As expressões dele são incríveis. Gostava muito do que ele sugeria em sua obra. Parece que não tem nada a ver com o meu filme, mas no fundo isso estava me alimentado, principalmente a questão da família, a menina que nasce sem cabeça, coisas que vão virando lenda por uma certa ignorância. Tem também um romance de um escritor argentino chamado Túlio Carella, Orgia. O livro se passa no Recife, e é sobre um professor de cenografia. É um livro incrível, porque Carella foi até lá à convite da universidade local e chamou muito a atenção por ser argentino. Com aspecto italiano, começou a se relacionar com o universo mais pesado da cidade. Então as pessoas ficavam apaixonadas por ele, justamente por se destacar naquele meio. Tudo isso ele vai escrevendo em um diário. E tem essa coisa da época da revolução cubana, de 1962, ele se torna uma célula comunista no local e acaba sendo expulso.
Como você está percebendo o impacto que Tatuagem tem causado antes mesmo de sua estreia, pelos festivais por onde tem sido exibido e premiado?
Tatuagem é feito para abrir janelas, não para se acomodar. A nudez é presente, mas é muito normatizada. Talvez o que mais incomode é que o desejo dos homens está sendo colocado pela afetividade. Isso as pessoas não estão acostumadas a discutir. Então, quis provocar um olhar não pelo escândalo, mas pela afetividade.
Uma coisa que gosto muito no filme é a sua coragem de utilizar um clichê e fugir dele. Na cena da tatuagem você pensa que o rapaz está sofrendo e não, é um ato de amor. O final é também genial. Você acha que ele vai invadir, que vai haver confronto entre os dois, mas não. O garoto está lá no palco. Para elaborar o roteiro com tantos elementos-surpresa assim levou muito tempo?
Trabalhei bastante no roteiro, porque queria estar mais satisfeito e relaxado no final. Mas a ideia dessas construções foi uma coisa proposital. Usar a narração como elemento melodramático. É o que tem de principal. A construção é feita a partir dessa coisa de camada. O nu, o melodramático, a aventura amorosa, o olhar de um cineasta superoitista em volta daquilo tudo. Era o que mais me interessava no momento dessa construção. Perdi muito tempo trabalhando no roteiro, no bom sentido. Tenho muito carinho por ele.
Uma riqueza muito criativa que o filme traz, ao menos para o público nacional que está longe dessa cena tão específica de Pernambuco, é o elenco. Vários nomes, e alguns novos. Como foi a seleção desse pessoal?
Foi um trabalho muito detalhado. Trabalhei bastante com meu assistente de direção, que foi Marcelo Caetano. A ideia era trabalhar com artistas de teatro. Transformamos todos eles em atores. Fomos a São Paulo, Recife, João Pessoa, Ceará, Rio e Bahia.
E a condução desse pessoal? Por exemplo, o que você consegue tirar do Irandhir Santos é fantástico. Quem o vê em O Som ao Redor (2012) ou em Febre do Rato (2011) e agora, assiste a três atores diferentes…
Irandhir é muito importante nesse processo. Apresentei o roteiro e pedi que se preparasse como em teatro, e assim íamos construindo os personagens do cotidiano. O que era difícil, porque são tipos que se contaminam com a linguagem teatral do dia a dia. Como Irandhir é um ator de uma interpretação muito grande, muito elaborada, as pessoas perguntavam se isso não daria muito distanciamento. Mas não, ele próprio desceu do alto da pirâmide e interagiu com todos os atores. Foi um trabalho incrível de umas seis semanas maravilhosas. Ele queria muito voltar ao teatro, só não pensou que voltaria pelo cinema.
Esse é seu segundo longa como diretor, depois do documentário Cartola (2007). Mas seu nome está nos créditos dos principais filmes que saíram nos últimos anos, como roteirista também. Existe um entre todos esses trabalhos pelo qual você tem um carinho especial, uma memória mais afetiva?
Tem coisas que, por serem as primeiras que você fez, existe um sentimento muito importante, e tem também aquelas pelas quais temos algo mais específico. Dois trabalhos para mim são relevantes, até por poder olhar atualmente para eles com mais maturidade: Baile Perfumado (1997) e Amarelo Manga (2002). O primeiro porque teve naquele momento o elemento-surpresa que foi o impacto de quando foi lançado, que as pessoas quando o assistiram esperavam algo diferente por ter sido feito em Recife. Já Amarelo Manga é um filme que até pensaram que eu era especialista em cangaço (risos).
Há pouco tempo chegou nos cinemas o filme A Memória que me Contam, da Lúcia Murat, que tem um núcleo de um casal gay, formado por Miguel Thiré e Patrick Sampaio. Recentemente tivemos também o Flores Raras, do Bruno Barreto, novamente com um casal homossexual no centro da trama. No entanto, ainda é pouca a representatividade da questão gay no cinema brasileiro. O que você acha dessa questão, o que falta para trazer mais à tona, e como Tatuagem se insere nisso?
Quando você está realizando alguma coisa, seja cultural, política, obviamente tem que dar conta de suas convicções. O que acontece hoje no Brasil é algo engraçado, a “pudorização” do povo ao extremo. Às vezes fico pensando no que a Globo fez com os gays: ela desapareceu com a possibilidade de nudez, de carinho entre partes íntimas. Na década de 1980 tinha uma novela que aparecia um cara nu, com a bunda à mostra, logo na abertura (N.E.: Brega & Chique, de 1987). De repente a bunda do cara desapareceu, vinte anos depois ela não existe mais, foi proibida. Então houve uma pudorização que a própria sociedade se aplicou. A questão gay era algo que estava se discutindo no final da década de 1970. Passei minha adolescência vendo Caetano Veloso beijando gente na boca, como Gilberto Gil, Chico Buarque. Havia uma coisa pública de liberação do corpo que depois foi desaparecendo. Essas discussões se tornaram estúpidas, pois quando você analisa esses filmes que estão colocando em pauta a sexualidade de fato, estamos tentando impedir que a porta se feche de vez. Quando você tem vergonha de narrar a suas experiências isso é um sinal muito ruim. O pior da censura é a autocensura.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2013)
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