Um dos grandes nomes do cinema brasileiro, Lúcia Murat está de volta às telas nacionais com o semiautobiográfico A Memória que me Contam, filme lançado durante o 45° Festival de Brasília, no ano passado, e que somente agora, quase um ano depois, entra finalmente em cartaz. Já premiada em Gramado, Brasília, Huelva, Mar del Plata, Rio de Janeiro e em São Paulo, Murat tem conseguido manter uma certa regularidade com suas produções, ainda que o processo de realização cinematográfica no nosso país nem sempre seja o mais fácil. Ainda assim, ela conseguiu reunir grandes nomes neste novo trabalho, como Irene Ravache, Simone Spoladore, Miguel Thiré e até mesmo o italiano Franco Nero – atualmente em alta após sua rápida participação em Django Livre (2012), de Quentin Tarantino. Nesta conversa inédita e exclusiva realizada com a diretora na capital federal, ela falou sobre as lembranças da luta contra a ditadura no Brasil, as fronteiras entre ficção e realidade, e sobre questões que hoje são muito mais urgentes, como a homossexualidade e a globalização. Confira!
Como foi a emoção de ter lançado A Memória que me Contam no 45° Festival de Brasília?
Foi como se um trator tivesse passado por cima de mim (risos).
Esse novo filme chega logo após a consagração de Uma Longa Viagem, premiado como Melhor Filme no 39° Festival de Gramado…
Na verdade o A Memória que me Contam começou a ser planejado muito antes do Uma Longa Viagem. Escrevi esse roteiro em 2008, a demora é porque é muito difícil no Brasil levantar dinheiro para fazer cinema. No meio desse caminho acabei ganhando um edital com o Uma Longa Viagem, e tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, a história com o meu irmão. Esse filme se impôs, caiu de paraquedas no meu colo, e por isso que o Memória acabou vindo depois.
Até que ponto a Irene Ravache, em A Memória que me Contam, é um alter ego seu ou um personagem puramente ficcional?
A grande vantagem de se fazer ficção é que ela te libera para mentir à vontade (risos). Você pode construir o personagem que quiser. Isso não me foi possível com o Uma Longa Viagem, ali cada vez que falava “eu”, era de mim mesma, ainda que através de uma memória seletiva. A verdade pode ser relativa, mas você assume um compromisso com os fatos. Na ficção isso não existe, então você pode construir o personagem como acredita que é importante. É evidente que essa personagem da Irene é inspirada em mim, mas através dessa liberdade que a ficção te dá.
Você já foi premiada em Brasília, Gramado, Rio de Janeiro… mas no filme há um momento em que se diz que a personagem tem pressa, pois ainda há muito a ser feito. Você, enquanto cineasta, possui essa urgência?
Essa fala, na verdade, tirei de um amigo meu, um cineasta também bastante conhecido, aliás. Um dia ele chegou pra mim e disse: “Lúcia, to muito agoniado”, porque tava fazendo as contas de quantos filmes ainda poderia fazer na vida. Mas creio que isso é algo natural, todo mundo acaba passando por isso, quando se chega a uma certa idade. A grande diferença entre o Que Bom Te Ver Viva (1989) e esse novo filme é que naquele momento tudo era muito recente, você era, naturalmente, mais agressiva, a dor era muito forte, a sensação de perda era muito recente. Era tudo muito absurdo, afinal se tratavam de jovens que estavam sendo assassinados. Hoje, esse filme retrata a perda de uma outra maneira, que é a natural, aquela do ciclo da vida. É você se deparar com a finitude das coisas. Não é extemporânea, não se trata de uma ditadura, é apenas parte da vida.
Um dos méritos de A Memória que me Contam é mostrar os dois lados da luta armada, há um mea culpa ali. Como foi pra você se distanciar das suas próprias experiências para compor essa narrativa?
Isso é algo que nós temos hoje, essa visão mais apurada. Claro que não elimina o fato de que houve, sim, uma ditadura, que nós éramos oposição, que eles torturaram e nós não. São vários fatos que hoje, felizmente, estão sendo discutidos. A gente não foi só vítima, nós também lutamos. E é importante ter essa consciência.
Como tem sido a reação do público nos festivais e pré-estreias?
Tem sido muito emotiva. Muita gente vem emocionada falar com a gente depois de cada sessão. A primeira versão do roteiro era muito racional, centrada basicamente nas discussões e nos questionamentos. Foi durante as filmagens que ele ganhou esse lado lírico mais forte. Ressurgiram apontamentos pessoais meus, e teve também a colaboração do elenco, como a Simone Spoladore, que entendeu muito a personagem, oferecendo a ela uma força muito grande. É isso que acaba tocando as pessoas.
Você traça, neste filme, um verdadeiro painel com arquétipos marcantes daquela época e dos dias de hoje. Qual era sua intenção ao traçar um retrato tão vasto?
Como foi inspirado num fato real, que foi a nossa reunião motivada pelos problemas de saúde da Vera (que no filme é interpretada pela Simone), o grupo já era muito grande. Em termos dramáticos isso era muito difícil, pois como fazer uma multidão discutindo numa sala de espera de hospital? Foi quando tive que selecionar algumas pessoas que representassem bem esse grupo, que na verdade era muito maior. Obviamente era importante ter o ministro, que é um dado fundamental de uma geração que, apesar de tudo, tem representantes no poder hoje. Tinha que ter alguém ligado à arte, pois é com o que eu lido. A questão da homossexualidade era importante ser tratada, pois era algo muito escondido pela minha geração e hoje, felizmente, tem um tratamento diferente. Era legal mostrar esse avanço, pois é impressionante. Havia essa necessidade de mostrar também o outro lado, o estereótipo é de que éramos os libertários e que hoje a sociedade tá careta, mas para algumas coisas o processo foi o contrário. E a menina de fora representa essa juventude de hoje, que é bem mais globalizada. Muitos dos nossos filhos nasceram no exterior, muitos são bilíngues, são consequências do exílio que enfrentamos.
Como foi conseguir a participação do Franco Nero no filme?
Foi muito simples. Parece estranho, ninguém acredita, mas foi exatamente assim. Na verdade já havia esse personagem, que era inspirado em um duque italiano. E o Franco me pareceu uma escolha lógica, sou fã dele. Para tanto foi preciso um coach, que trabalhou com ele treinando o português na Itália por dois meses antes dele vir para cá filmar. Eu sempre quis que esse personagem fosse interpretado por um italiano real, não um brasileiro que se fizesse passar. Queria fugir da caricatura. Por causa de tudo que já fiz e circulei, tenho um relativo bom tráfego internacional, então não foi muito difícil chegar até ele. Foi um produtor inglês que me indicou o Franco. E ele é maravilhoso, tem um rosto absurdamente cinematográfico, é só colocar uma câmera nele que tudo se ilumina. Ele faz você acreditar na força do carisma. Oferecemos apenas um cachê simbólico, pois realmente não havia dinheiro para muito mais, mandamos o roteiro e toda a negociação foi por email. Sei que ele foi pesquisar meu nome, viu minha ficha no IMDb (e, felizmente, sou muito bem tratada por lá), e depois disso acabou topando.
A composição do casal homossexual, e mais no final, quando há o beijo a três, além das referências que o próprio filme trás de Maio de 1968, remete muito à Os Sonhadores (2003), do Bertolucci. Esses paralelos foram intencionais?
Os Sonhadores retrata uma época, e a gente também procura fazer isso, mas de formas diferentes. Tem esses elementos da fantasia, da liberação… Todos os jovens do filme passaram por um período de preparação de atores, inclusive a cena de sexo entre os rapazes, foi tudo muito delicado, com bastante cuidado. A gente mudou muito o roteiro, trabalhamos sempre abertos ao improviso, justamente para que fosse natural.
Com quem A Memória que me Contam procura se comunicar?
O filme fala de perda, fala de conflito de gerações. Não é focado apenas em um público, só naqueles que passaram por isso. A Memória que me Contam é mais amplo, a discussão ainda está viva e pode se comunicar com qualquer espectador. E é isso que buscamos, a troca.
(Entrevista feita com a diretora ao vivo em Brasília, durante o festival de cinema de 2012)