Nascida em Curitiba, Simone Spoladore partiu ainda adolescente para São Paulo para investir na carreira de atriz. Apesar de fazer bastante teatro e televisão, seus maiores destaques estão no cinema, com trabalhos reconhecidos de norte a sul do país. Depois de ter sido premiada nos festivais de Gramado, Goiânia e Aracajú, ela participa do 45° Festival de Brasília com seu mais recente longa-metragem, o ficcional A memória que me contam, de Lúcia Murat. E foi aqui na capital federal que o Papo de Cinema realizou essa entrevista inédita e exclusiva com a atriz paranaense, que falou também sobre suas principais experiências anteriores, como é o seu processo de construção de personagem e quais as expectativas quanto a esse novo filme. Confira abaixo a transcrição na íntegra dessa conversa!
Simone, você tem vários filmes prontos para entrar em cartaz. Qual é o próximo a estrear?
É verdade. Acho que o primeiro a chegar de fato até o público, ainda neste ano, é o Sudoeste, do Eduardo Nunes. A estreia está marcada para o dia 19 de outubro, no Rio de Janeiro, e 16 de novembro em São Paulo. Vai ser um lançamento bem pequenininho, logo após os festivais do Rio e de SP. E aos poucos deverá chegar ao resto do país. Sudoeste está rodando há um bom tempo, viajou bastante, passou nos festivais de Gramado, Chicago (EUA), Rotterdam (HOL) e até na Coréia do Sul (N.E.: Jeonju Film Festival), e foi premiado no Festival de Vitória e em Havana (CUBA). Ah, ganhou também como Melhor Filme na Rússia, no Andrei Tarkovsky International Film Festival. É um filme muito bonito, gosto muito dele.
Sudoeste tem uma proposta completamente diferente do seu último trabalho, o Elvis & Madona, não é mesmo?
Nossa, completamente diferente. É um outro formato, preto e branco, muito mais intimista. Já o Elvis é muito mais alegre, colorido. É uma comédia, outro trabalho que também me deu muito prazer.
Elvis & Madona está saindo agora em dvd. Como foi esse trabalho?
Meu maior pesar é que o filme teve pouco público, a gente achava que poderia ter sido muito mais. Era uma história que queria se comunicar com um público bem mais amplo. Faltou dinheiro pra investir num lançamento maior, é claro, mas teve também o lance do preconceito dos exibidores, que não quiseram apostar no filme. Hoje em dia, no Brasil, filmes que conseguem ter público são lançados com 300 cópias, numa estrutura gigantesca. O nosso foi muito humilde, e acabou restrito ao circuito de arte.
Elvis & Madona falava muito sobre a questão dos gêneros, o seu personagem era uma lésbica que se apaixonava por um travesti. E esse novo filme, A memória que me contam, também questiona os preconceitos. Qual sua opinião sobre as formas de abordar esse assunto?
É muito difícil falar ainda. Aqui em Brasília foi a primeira vez que vi o A memória que me contam. Pra mim isso ainda é um processo, não consigo ver tudo de uma só vez. Fico em alguns fragmentos, e aos poucos vou montando o filme dentro de mim. Fiquei muito tensa também, não consigo ainda fazer uma avaliação mais precisa. Mas gostei muito, a reação do público foi ótima, estou muito feliz nesse momento.
Quais os pontos fortes de A memória que me contam na sua opinião?
Tem muitos, né? Senti o público muito ligado durante a sessão. Uma coisa muito bacana foi a reação em relação ao personagem do Otávio Augusto, que é ótimo. Ele provoca o humor de uma maneira espetacular. E tem também a questão de Brasília, que é onde estamos e é um dos assuntos do filme. Essa conexão se fez de forma automática.
O que mais lhe chamou atenção em A memória que me contam?
É muito difícil o jogo que a Lúcia Murat (diretora) propõe com esse filme. A gente tem uma noção do que vai ser quando lemos o roteiro, mas ver o trabalho pronto é muito diferente. Isso me assustou um pouco ao assisti-lo aqui em Brasília. Esse jogo com a memória é impressionante. Leva um tempo até você finalmente entender o que está acontecendo. É um processo que se constrói junto do espectador.
Como você se preparou para A memória que me contam?
Quando fiz Vestido de Noiva (2004), tive um bom período de preparação com a Camilla Amado, que havia feito o Vestido de Noiva no teatro, com o Ziembinski, e ele dizia para ela que a única ação da Alaíde era respirar, porque é um personagem que também está morrendo, assim como a Ana, minha personagem em A memória que me contam. Essa foi uma imagem muito bonita, que regatei durante as filmagens. Claro que agora não vemos a Ana na cama, morrendo, mas ela só existe nas lembranças e nas memórias dos outros, dos amigos. Ela nunca está ligada ao real, está, sim, na cabeça deles. E eles lembram dela com uma imagem de 30 anos atrás. Cada um tem a sua própria Ana.
Como foi trabalhado isso no roteiro, uma vez que não existe uma uniformidade na personagem?
Os amigos da Ana lembram dela com 30 anos, mas a olham com a vivência de hoje, com mais de 60, de quem viveu tudo aquilo. E como se faz isso? Ainda por cima tem a imagem do mito, simbólica, sempre um pouco idealizada. Era o que busquei, mas sem nunca deixar de ter a emoção da personagem, que era a única coisa com a qual poderia me guiar. Foi assim que a construímos. Mas, acima de tudo, havia a emoção da Lúcia fazendo o filme. Era nisso que me apoiava. Não tinha a possibilidade de eu ser uma mulher de sessenta anos. Mas a Lúcia me ajudou muito neste sentido, era por onde eu ia.
Como se adaptar a cada uma destas versões da Ana?
Foi muito treino e improvisação. Tem uma hora que a Ana fala italiano! Para cada um destes amigos ela era uma personagem diferente. Por isso foi importante o jogo com estes atores, o que eles tinham para me propor e como iríamos montar nossa cena em conjunto. Cada um deles tinha uma proposta específica, com o seu jeito de atuar. E eu ia me adaptando. Nesse momento deixava o ilusório e ia para o real, para aquele instante. Foi nisso que tentei me inspirar.
Este é um filme muito emocional. A Irene Ravache vive em cena o alter ego da Lúcia Murat, enquanto que o seu personagem é inspirado na Vera Silvia Magalhães, que foi amiga da Lúcia. Você precisou fazer pesquisa?
Sim, com certeza. Vi entrevistas com a Vera, observei o modo dela falar, se expressar. Estudei a experiência dela. Li também livros sobre a época, material que ainda não havia lido, como O que é isso, companheiro?, o 1968 – O ano que não terminou. Assisti aos outros filmes da Lúcia. Foi dessa maneira. E fui também muito pelo lado da imaginação e da poesia, das imagens mais inconscientes. Uma cena muito referente para mim vinha da água, imaginei essa mulher como algo muito líquido, que chegava até os amigos. Que viveu muito, passou por muita coisa e depois não conseguiu mais se adequar à sociedade. Ela foi além, rompeu com tudo. Então pensava num mar revolto, num lugar cheio d’água. Foi um choque quando vi o filme e vi que ele começava no mar. Claro que isso já estava descrito no roteiro, mas ver concretizado foi impressionante. Essa cena, em que apareço mergulhada, engolida pela água, foi muito importante.
Este personagem foi construído durante as filmagens, no contato com a Lúcia, ou você já o tinha pronto após essa pesquisa?
A gente nunca está pronta. Você pesquisa, estuda, mas quando chega a hora é preciso reconstruir. Como quando atuamos com crianças, não dá pra saber exatamente o que irá acontecer. É preciso esquecer tudo o que foi visto antes e começar sempre do zero. Tentar reproduzir é muito complicado. A gente junta tudo o que aprendeu e na hora vê o que vai utilizar. A pior coisa é quando o diretor chega e diz que um take ficou perfeito. Sim, porque depois vou querer repetir, e nunca sai igual. Estamos sempre fazendo, jogando fora e começando de novo. É preciso esquecer e lembrar, repetidamente.
Vamos falar um pouco sobre a sua carreira. O que significou começar no cinema logo com um filme tão marcante quanto Lavoura Arcaica (2001)?
É muito difícil saber. Lavoura Arcaica foi meu primeiro longa, mas já havia feito vários curtas. E comecei na dança com sete anos. No teatro, com 11. A primeira peça profissional foi com 16. O Lavoura veio quando tinha 18, 19 anos. Já era um sonho fazer cinema, e quando surgiu essa oportunidade, aproveitei. A gente nunca decide “agora vou fazer cinema”, é uma questão de aproveitar as oportunidades. Você tem essa vontade, essa necessidade, e a vida vai nos guiando. É uma parte sua e outra do contraponto que o destino vai nos oferecendo. Fazer Lavoura foi encontrar uma coisa que há muito estava procurando.
Como você se divide entre cinema, teatro e televisão?
Cinema é a minha grande paixão, cada vez tenho mais certeza disso. Mas gosto bastante de televisão também, teatro é um barato. Poder circular entre os meios me possibilitou brincar com os gêneros. Desde jovem trabalhei em papéis densos. Então foi importante aprender a rir com Bela, a Feia, por exemplo. Não venho de uma família de atores, estou aprendendo tudo sozinha. É um processo de poder descobrir as coisas aos poucos.
Outro filme selecionado para o Festival de Brasília foi o Eles Voltam, que conta no elenco com o Germano Haiut, com quem você trabalhou em O ano em que meus pais saíram de férias (2006). Alguma coisa desse trabalho você conseguiu reaproveitar em A memória que me contam, até pela similaridade temática?
É engraçado. Quando vou fazer um personagem, e já tenho alguns na minha filmografia, você sempre aproveita algo dos que passaram. Você usa um pouco dos outros. Faço uma triagem, pra ver o que o personagem atual tem a ver ou não com os anteriores. Isso me ajuda a dar um caminho para aquele que está sendo construído. O que acho bem diferente do Memória para O Ano é que neste havia uma ação real, ela estava no ato, mesmo não aparecendo a guerrilha, o público sabe porque ela está ausente. Ela abandona o filho, tem essa cena, assim como a do reencontro depois. Aqui, agora, não tem nada acontecendo, é só a memória, e a dos outros. A vivência dos dois papéis se cruza, no entanto. Os personagens vão trazendo memórias.
Você tem uma filmografia bem significativa, com projetos diferenciados, e na maioria sem muito apelo ao grande público. Como é o seu processo de escolha no cinema?
Acho que agora estou ficando mais exigente. É parte da idade, da experiência que a gente vem somando. Procuro escolher pelo personagem, mas também pelo roteiro. Quero ficar atenta. Mas isso não quer dizer que tenha preconceito contra os filmes mais comerciais, muito pelo contrário. Poderia fazer, claro. É só questão de surgir o convite certo.
Você ganhou o Prêmio Guarani, aqui no Papo de Cinema, por Desmundo. Ganhou, há pouco, o APCA por três filmes – Natimorto, Elvis & Madona e Não se pode viver sem amor. E está num festival, concorrendo com outros trabalhos. O que significam essas premiações?
Ah, é quase um abraço ganhar um prêmio. A gente trabalha tanto, que é importante, me deixa muito feliz. Mas é claro, como diz meu namorado, prêmio é algo que você tem que ganhar e esquecer, porque por outro lado é só aquela alegria momentânea da vitória, do reconhecimento. Depois a vida continua, e aquele prêmio não vai mudar a sua vida. Ele aumenta nossa responsabilidade para os próximos trabalhos, mas também não pode deixar aquilo ocupar um espaço muito grande na nossa vida, porque senão a gente perde o prazer pelas coisas. É preciso saber se divertir.
É dá pra se divertir em filmes como Lavoura Arcaica, Desmundo ou A memória que nos contam, que são bem pesados?
Dá, claro, com certeza. No começo da carreira não tinha bem essa noção, apesar de ter me divertido muito fazendo o Lavoura Arcaica. Eu dancei muito, todos os dias. E era o primeiro filme, com uma carga emocional enorme. Era um prazer enorme, a juventude explodindo. Tinha a inocência, a descoberta, de não saber, da inconsequência.
Algum dos seus trabalhos que lhe chama mais atenção?
Não, é muito difícil escolher. Cada um foi importante naquele momento em que me envolvi com ele. Elvis e Madona foi importante por causa da comédia. Natimorto foi importante porque estava saindo de um momento de depressão e foi bom me envolver com algo produtivo, o Lavoura Arcaica foi importante porque foi o primeiro, Desmundo porque foi a primeira protagonista. Esse encontro com a Lúcia, com a história dela, foi o que me chamou atenção agora.
Há uma possibilidade de termos um Elvis e Madona 2?
Ultimamente o Marcelo Lafitte, o diretor, não tem falado a respeito, mas lembro que durante o lançamento do primeiro filme essa possibilidade foi comentada e eu acharia ótimo. Adoraria fazer. Um roteiro possível era sobre os dois personagens se separando e percebendo a falta que faziam um para o outro. Acho que a pouca bilheteria que o filme teve meio que encerrou o assunto, infelizmente.
Além do Sudoeste, que está para estrear, quais são seus próximos projetos?
Tenho alguns em vista, mas nada com data certa para começar a filmar. Irei fazer o primeiro filme de ficção da Flávia Castro, que fez o doc Diário de uma Busca (2010). E nele serei uma guerrilheira, de novo. Vou virar uma especialista (risos). O interessante de todos esses filmes sobre esse tema é que nunca é uma imagem estereotipada. No Ano ela nunca aparecia em combate, no Memória são só as lembranças, e nesse filme da Flávia é uma outra abordagem, diferente das duas. Não é um filme de ação. Depois tenho o filme do Eduardo Nunes, A Morte Feliz, que ele está adaptando do livro do Camus, e tem também o próximo da Helena Ignez. Ou seja, só coisa boa pela frente.
(Entrevista feita no dia 20 de setembro de 2012, em Brasília)
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