Olhe Para Mim de Novo. É o nome do longa de Claudia Priscilla e Kiko Goiffman. Mas a frase que dá nome ao documentário poderia muito bem referir-se à postura da plateia do debate sobre o filme, ocorrido na manhã seguinte à exibição. A impressão que tive foi que 90% das perguntas para a equipe do longa eram feitas utilizando não o cérebro, mas sim o ego.
O melhor filme brasileiro da mostra até agora é dramático, engraçado e pesado, muito pesado. Nem vale entrar na comparação com o estrangeiro da noite, o uruguaio El Casamiento, que deveria ter sido exibido junto com As Hiper Mulheres: ambos são um mero registro de um cotidiano, sem um argumento forte ou personagens interessantes (apesar do potencial para isto). Olhe Para Mim de Novo é bem mais do que isso: um drama de um homem que nasceu com corpo de mulher e paga por isso através dos olhares preconceituosos e hipócritas da sociedade. Syllvio Luccio tem marcas, cicatrizes – como ele mesmo frisou, exaltado, na conversa com a imprensa, críticos e estudantes. Mas não havia como o personagem principal do filme não ficar exaltado. Ele está ali, exposto na tela grande, como um grande livro aberto, e também dando a cara a tapa no debate. E então, a primeira pergunta que ele ouve é: “Por quê você decidiu ser o pior homem possível?“.
Cabe ressaltar que a pergunta é uma tremenda injustiça com ele. Syllvio é um dos personagens mais ricos da história recente de documentários nacionais (me lembro de força parecida vinda de Estamira, personagem que dá nome ao filme de Marcos Prado, e que faleceu recentemente). Um homem que ainda tem corpo de mulher, que já ficou grávida (quando ainda se considerava lésbica), que é casado há mais de dez anos, que é muito bem humorado. Tão bem humorado que incomoda muita gente, apenas porque diz, a certa altura do filme, que “mulher é que nem café: só é boa quando é quente“. Não consigo enxergar misoginia, machismo ou qualquer espécie de preconceito, tampouco quando vejo mulheres desdenhando da inteligência dos homens – pra ficar numa piada bem comum entre os gêneros. Se fosse por isso, o ritual indígena mostrado no documentário A Hiper Mulheres, exibido na terça, deveria também ser considerado um desrespeito. Syllvio fala às vezes expressões como “todas nós” ao invés de “todos nós”, seu corpo é o de uma mulher, não há como esquecer disso, seu espelho o lembra os dias. Não há drama maior para um ser humano: não poder ver a si próprio como é de verdade. E isso não é nem um pouquinho engraçado. E agora: vamos condenar o bom humor deste homem? Acho que não.
A despeito da baixíssima qualidade das perguntas – teve estudante de cinema até confundindo “matinal” com “vespertino” e deixando o diretor Kiko Goiffman sem ter como dar uma resposta – a equipe foi corajosa e digna ao responder e defender seu filme, que é muito bom, por sinal. Uma belíssima fotografia, um roteiro que, mesmo quando parece que vai se perder, nos traz de volta ao baile, como se nos conduzisse pelo salão ao som de uma triste valsa.
A escolha também por vezes criticada de basear o documentário em um personagem quase onipresente é natural: não há como desgrudar olhos e ouvidos de Síllvio Luccio, que é de um magnetismo ímpar. Mesmo que o humor do personagem tenha sido criticado no debate, não foi o que se ouviu na sala de exibição do Palácio dos Festivais. As risadas sinceras e até aplausos no meio do filme demonstram que o público parece ter pescado melhor a proposta do filme do que os – supostamente – entendidos do assunto. Resta citar a diretora Cláudia Priscilla: “Não existe um filme, existe o olhar de cada um para o filme“.
Sim, amigos, isso sim é cinema.