Se as demais sessões noturnas da 43ª edição do Festival de Cinema de Gramado forem do mesmo nível da noite de abertura, teremos um evento de qualidade incomparável. Que Horas ela Volta?, de Anna Muylaert, exibido fora de competição, e En La Estancia, de Carlos Armella, primeiro longa latino a concorrer ao Kikito deste ano, são dois longas interessantíssimos, bastante distintos entre si, ainda que apresentem uma curiosa ligação: a espera pela chegada de alguém que, parece, nunca voltará. No caso do primeiro, uma mãe distante. No segundo, um homem solitário e perdido.
Uma lástima que o público não tenha lotado a sala do Palácio dos Festivais neste primeiro dia. Além destes dois belos longas-metragens, quem ficou de fora da abertura perdeu um sensível curta-metragem assinado por Leandro Tadashi, intitulado Bá (termo que, traduzido do japonês para o português, significa “avó”). Este belo curta mostra como a vida do garotinho Bruno muda quando sua bá muda-se para sua casa. Primeiramente incomodado pela invasão, o menino vai se encantando pela tranquilidade e sabedoria daquela senhora, enquanto observa seus pais e a irmã mais velha reagirem de formas diversas à presença da avó. Com elenco bem escalado e uma progressão narrativa sensível e muito próxima da realidade, Bá iniciou os trabalhos do Festival de forma encantadora.
Um dos longas-metragens mais esperados em Gramado nesta edição era, sem sombra de dúvidas, Que Horas ela Volta?, de Anna Muylaert. Depois de ter ganhado prêmios nos concorridos e prestigiosos festivais de Sundance e Berlim, o filme estrelado por Regina Casé tinha tudo para ser um dos principais postulantes aos kikitos deste ano. No entanto, há poucos dias do início do Festival, em uma decisão surpreendente, a produção foi retirada de competição. Uma pré-estreia marcada para São Paulo durante os dias do evento na serra gaúcha teria sido o motivo.
Ao assistirmos a Que Horas ela Volta? é impossível não se perguntar porque Regina Casé insiste em ficar tanto tempo longe das telonas. É verdade que recentemente ela esteve no esquecível Made in China (2014). Mas antes disso, só em 2000, no excepcional Eu Tu Eles ela havia dado as caras em uma produção cinematográfica de calibre. Neste novo longa de Anna Muylaert, Casé encabeça um elenco muito afiado, vivendo uma figura que fica no centro de duas forças antagônicas que se chocam durante todo o filme: sua patroa esnobe Bárbara (Karine Teles) e sua filha ultrajantemente confiante Jéssica (Camila Márdila). Além de ser um interessante retrato do abismo de classes, mostrando um universo não muito diferente do regime escravagista (temos praticamente a casa grande e a senzala naquela casa chique), Que Horas ela Volta? também investe na emoção, construindo personagens críveis, profundos e cheios de desejo – seja ascender socialmente, seja sair de um casamento de aparências, seja perder a virgindade ou reatar laços há tempos perdidos. Um filme ímpar, que merece todos os louros que vem colhendo.
Com o (esperado) atraso da abertura do Festival, as duas sessões posteriores acabaram pagando um preço alto, tendo iniciado perto das 23h. O curta-metragem mineiro Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada, de João Toledo, foi exibido fora de competição por ter tido uma sessão em Porto Alegre – e o regulamento de Gramado estipula que os curtas precisam ser inéditos no Rio Grande do Sul. Estilizado, mostrando um rapaz angustiado e perdido, o curta acabou não causando a impressão que poderia.
Abrindo a competição dos longas-metragens latinos, En La Estancia é o típico filme que incomoda durante sua exibição, crescendo cada vez que o espectador para e pensa no que acabou de assistir. O diretor Carlos Armella divide seu longa em três atos: o primeiro com aparência documental, o segundo um tanto poético e o terceiro, um suspense que vai se desvelando de forma surpreendente. O que mais chama a atenção neste longa é como ele inverte as expectativas do espectador a cada novo segmento. Com exceção do artifício do revólver, que era bastante previsível, é impossível saber o que vai acontecer naquela história. O elenco é assustadoramente convincente, com destaque para Gilberto Barraza, que vive dois momentos distintos de seu personagem. No primeiro, com uma atuação bastante naturalista – não é difícil acreditar que aquele sujeito passa seus dias sozinho ao lado do pai em um lugar ermo e abandonado; no segundo, mostrando uma faceta assustadora. Com sessão encerrando perto da 1h da manhã e com narrativa lenta, En La Estancia pode ter sido prejudicado pela exibição tardia. Quem passou por cima disso e entendeu o incômodo da trama como um recurso narrativo saiu satisfeito deste primeiro dia do Festival de Gramado.