Em 2014, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro promoveu uma importante mudança de suas mostras competitivas, tanto de longa quanto de curtas-metragens: o fim das divisões por gêneros. Se entre os longas a ruptura foi menos drástica, apenas eliminando a separação entre ficções e documentários, na competição de curtas o novo formato causou ainda mais espanto, pois acabou-se com a disputa, além dos dois modelos mais tradicionais, também entre animações. Assim, os doze títulos selecionados para este ano, exibidos em duplas a cada noite da programação oficial, buscam ser representativos do que de melhor está sendo realizado no Brasil em todos os estilos e temáticas.
A comissão de seleção foi formada pelos produtores André Leão, Carla Osório e Guilherme Whitaker, pelo cineasta Frederico Cardoso e pela jornalista Indaiá Freire. Já o júri era formado pelos cineastas Esmir Filho, Marcus Vilar e Bruno Safadi, pelo jornalista Felipe Moraes e pela historiadora Beth Formaggini. Confira aqui um apanhado crítico dos títulos selecionados neste ano.
B-Flat (SP, ficção, 2013), de Mariana Youssef
A cineasta paulista Mariana Youssef foi de Nova York à Índia para revelar uma história que poderia muito bem se passar no sertão nordestino ou no pampa gaúcho. Contando com basicamente dois atores – Romil Modi e Deepak Dhadwal, ambos excelentes – tem-se uma trama sobre reencontros com o passado e a necessidade de acertos de contas através de sinceros pedidos de desculpas. O final inspirado compensa o fato da diretora levar 24 minutos para um conto que poderia tranquilamente ter levado um terço deste tempo.
Bashar (SP, documentário, 2014), de Diogo Faggiano
Mais uma produção nacional que se passa no exterior. O cenário dessa vez é a cidade de Aleppo, na Síria. Lá, a partir de uma entrevista do presidente/ditador Bashar al-Assad a uma rede de televisão ocidental, o diretor propõe um olhar a respeito das contradições do discurso oficial com a realidade das ruas de uma das maiores cidades do país, imerso em uma triste guerra civil. A narrativa, no entanto, é redundante, e alguns inadequados toques de humor acabam não funcionando como deveriam, desperdiçando essa rara oportunidade de um olhar brasileiro sobre uma grave questão internacional.
Castillo y el Armado (RS, animação, 2014), de Pedro Harres
Outro curta brasileiro com forte influência estrangeira. Agora é a vez do Uruguai, de onde vem o diretor de arte e roteirista Ruben Castillo – que, inclusive, dubla o personagem principal deste filme inteiramente falado em espanhol. Baseado em uma história verídica, é sobre um conto de pescador em que o peixe consegue se vingar de seu triste destino mesmo depois de morto. Selecionado também para o último Festival de Gramado, teve sua participação cancelada no evento gaúcho após ser convidado para o prestigioso Festival de Veneza, onde teve sua première mundial. Um reconhecimento à altura da qualidade do traço e da trama apresentada.
Crônicas de uma Cidade Inventada (DF, documentário, 2014), de Luísa Caetano
A brasiliense Luísa Caetano teve uma boa ideia: foi para a rodoviária central de Brasília com uma câmera na mão e um cartaz que dizia: “testes de elenco”. Diversas pessoas apareceram interessadas em uma fama imediata no cinema, sem perceber que o próprio vídeo de apresentação seria o resultado final deste filme que se preocupa em ouvir as vozes e as histórias de pessoas comuns que habitam a capital federal. E entre a faxineira da estação e um garoto de programa, alguns dos relatos são pouco interessantes, porém curiosos a seu próprio modo. Talvez com uma melhor edição em um formato mais enxuto a obra fosse mais atraente, mas de qualquer forma se vale pelos bons personagens reunidos.
Estátua! (SP, ficção, 2014), de Gabriela Amaral Almeida
A pernambucana Maeve Jinkings é a protagonista desta história de terror psicológico que emula filmes como O Bebê de Rosemary (1968) e A Profecia (1976). Ela aparece como uma garota grávida de seis meses que é contratada para passar dez dias na casa de uma aeromoça em viagem, cuidando da filha de nove anos dessa. A menina, no entanto, é muito menos inocente do que se poderia imaginar. O final, tão absurdo quanto surpreendente, encontra ecos nos trabalhos anteriores da cineasta, como o longa Quando Eu Era Vivo (2014), feito a partir de um roteiro seu.
Geru (SP, documentário, 2014), de Fábio Baldo e Tico Dias
A sinopse deste filme diz: “em seu aniversário de 100 anos, Zé Dias decide confiar sua vida a uma câmera”. Porém, não espere por uma cinebiografia convencional, muito menos por um trabalho documental rígido e abrangente. O que se tem aqui é quase uma alegoria a respeito de um homem que não tem mais voz, sobrevive como um fantasma em sua própria casa e segue tão arraigado aos afazeres diários de hoje como ontem. Provoca uma curiosidade estranha, quase mórbida, e que não é de todo satisfeita.
La Llamada (SP, documentário, 2014), de Gustavo Vinagre
Olhar para o exterior é mesmo uma tendência desta seleção. E após passar pela Índia, Síria e Uruguai, chegamos a Cuba. Aqui acompanhamos a rotina de Lázaro Escarze, um revolucionário de 87 anos que vive da pequena vendinha de sua propriedade e terá um telefone próprio pela primeira vez na vida. A modernidade contra a tradição? O capitalismo versus o socialismo? Para quem ele irá ligar? O registro, feito em um preto e branco mais onírico que realista, provoca até certo ponto, porém perde muito de sua força pelo caráter embevecido do realizador sobre seu personagem, abordado sem o distanciamento necessário.
Loja de Répteis (PE, ficção, 2014), de Pedro Severien
O cinema de Pernambuco tem se destacado nos últimos anos pela força de suas imagens e por um discurso minimalista e poderoso. Aqui não é diferente, ainda mais por contar com a musa Maeve Jinkings como protagonista. Movidos pela especulação imobiliária, o casal protagonista precisa fechar a loja de animais que mantém e se mudar para um outro lugar. Mas os bichos não aceitarão essa mudança de forma muito pacífica. O gutural irá emergir mostrando sua verdadeira face, e o registro do diretor terá mais força do que as palavras proferidas. É um filme forte, que provoca reflexão e não se preocupa em oferecer muitas justificativas.
Luz (RJ, documentário, 2014), de Gabriel Medeiros
A vida de quem vive sem energia elétrica em sua própria casa. Com longas vinte e cinco minutos e duração e uma câmera pouco investigativa e mais contemplativa, tem-se o depoimento de pessoas que vivem de modo ilegal em zonas de interesse ambiental no litoral do Rio de Janeiro e que, por isso mesmo, não possuem luz instalada em suas casas. Ainda que o argumento seja válido, o resultado é fraco de maiores interesses.
Nua por Dentro do Couro (MA/RS, ficção, 2014), de Lucas Sá
O melhor título de todos os filmes apresentados no festival esse curta já garantiu. Trabalho do diretor maranhense Lucas Sá, radicado no Rio Grande do Sul, onde estuda Cinema na cidade de Pelotas, o trabalho é sobre uma mulher (Gilda Nomacce) que decide fazer bolinhos (e não cupcakes!) para vender e, assim, conseguir sustentar um importante vício. De conceito inesperado, que brinca com o absurdo e uma estética de gênero, exibe referências cinéfilas que vão de Possessão (1981), de Andrzej Zulawski, a A Pequena Loja dos Horrores (1960), de Roger Corman. Genial!
Sem Coração (PE, ficção, 2014), de Nara Normande e Tião
Uma história de amadurecimento, construção da personalidade e primeiros amores. Ao passar as férias na casa do primo, em uma pequena vila de pescadores, Léo conhece uma menina apelidada de ‘Sem Coração’. E isso por um motivo muito simples: ela é responsável pela iniciação sexual de quase todos os garotos da região, sem se apegar a nenhum deles – o que talvez possa mudar com a chegada do novato. Os olhares profundos dos personagens e as dinâmicas que vão se estabelecendo entre eles falam mais alto do que a narrativa em si, revelando uma profundidade mais relevante e pertinente do que se poderia suspeitar num primeiro momento. Mais uma boa revelação do cinema pernambucano.
Vento Virado (MG, ficção, 2013), de Leonardo Capa Preta
Único representante mineiro na competição, este é um filme interessado mais em provocar dúvidas e questionamento do que em oferecer respostas. Paulo André (O Homem das Multidões, 2013) é o protagonista desta história sobre um homem imerso em objetos sem valor nem função, mas que encontra no inanimado mais retorno do que no calor das relações humanas. Estranho o define com precisão, focando-se mais em imagens provocadoras e na ausência de texto. O resultado, como não poderia deixar de ser, é no mínimo confuso e frustrante.
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