É apenas coincidência, mas, atualmente, existem três filmes em cartaz nas salas brasileiras cujo tema é bem peculiar: a própria criação ficcional. Numa espécie de exercício metalinguístico, os três longas enveredam pelos meandros da ficção e, como resultado, acabam fazendo pensar o quanto a oposição entre o real e o fictício é realmente válida, ou até mesmo se não são parte de uma mesma instância.
O primeiro deles, Dentro da Casa (2012), é na verdade do ano passado. Dirigido pro François Ozon (que já tinha se aventurado por este terreno no excelente Swimming Pool – À Beira da Piscina, 2003), a partir de um roteiro adaptado por ele de uma peça de Juan Mayorga, o filme finalmente chegou ao Brasil depois de algum tempo.
Germain, um azedo professor de francês numa escola de ensino médio (uma versão francesa de Woody Allen), vive se lamuriando para sua mulher, Jeanne (uma divertida Kristin Scott Thomas) sobre a incapacidade de seus alunos para escrever algo interessante. É quando surge Claude (Ernst Umhauer, com o olhar mais poderoso da telona nos últimos tempos), com redações nas quais descreve o dia a dia na casa de um colega de classe. Os textos sempre terminam com “continua…”. É o suficiente para que Germain incentive mais visitas a casa do colega, sem perceber que sua sede pela ficção pode, também, trazer consequências graves para a realidade que a gera.
A óbvia associação entre Claude e Ozon, como o “contador da história”, escancara a metalinguagem do filme, que vai se materializando na decupagem ao misturar no mesmo espaço personagens que nem se conhecem. Uma divertida (e perigosa) brincadeira, conduzida por Ozon com uma perspicácia única e referências que vão de Borges a Hitchcock. Talvez o mais bem sucedido em seu intento dos três filmes aqui apresentados, Dentro da Casa conta ainda com um plano final memorável e de uma artificialidade calculada e esplêndida.
Tudo isso dialoga diretamente com A Visitante Francesa (2012), longa do coreano Hong Sang-soo. Bem mais leve do que Dentro da Casa, o filme tem como um dos maiores trunfos a presença de Isabelle Huppert, para quem a produção se torna um palco aberto ao exercício da atuação. A trama é simples: uma estudante de cinema escreve um roteiro. Nesse roteiro, a visitante francesa do título (Huppert) passa pela situação de se hospedar num hotel à beira-mar no interior da Coréia do Sul três vezes seguidas. Em cada uma delas, embora os elementos estruturais sejam os mesmos, a predisposição da personagem e suas motivações desencadeiam reações diversas. O elenco coreano é excelente e cria situações hilárias por seu absurdo.
O cinema mínimo de Sang-Soo se casa bem com a simplicidade da história e ainda vira uma “armadilha” para tornar imperceptíveis as interseções propositalmente plantadas entre uma história e outra, seja uma linha de diálogo em comum, seja uma ação que afeta uma outra, noutra história. O tratamento do tempo e do espaço é quase deleuziano – não em sua captura, mas em sua concepção – e, por sua multiplicidade, dá ao longa uma dimensão filosófica.
Também é interessante notar como o zoom da câmera vira um recurso de denúncia de sua artificialidade e recurso de distanciamento, lembrando ao espectador – que inacreditavelmente esquece disso! – que tudo aquilo se trata de um filme. Um discreto toque brechtiano.
A terceira ponta do triângulo vem pelas mãos de um veterano do cinema: Alain Resnais. Seu Vocês ainda não viram nada (2012) é praticamente um A Origem (2010) cinematográfico (e a referência ao filme de Nolan serve como mais uma brincadeira metalinguística). O filme parte da peça consagrada de Antoine d´Anthac, Eurídice, baseada no mito grego de Orfeu. Perceba que já são duas camadas de significado. A terceira camada é a trama do longa em si, que consiste na morte de um famoso diretor (alter ego de Resnais) que deixa aos seus atores prediletos (todos importantes na filmografia de Resnais, uma quarta camada de significado) a missão de avaliar a encenação da peça por um grupo contemporâneo (quinta camada).
Essa montagem, por sua vez dirigida por Bruno Podalydès (de Adeus Berthe, 2012), foi filmada e será exibida para esta seleta plateia, dentro da trama “raiz” (sexta camada). Tocados pelos papeis que um dia representaram, – e que se ampliam dentro das figuras universalizantes de uma peça desse porte – os atores abrem uma sétima camada e se veem reencenando os papeis que marcaram suas vidas e que, de alguma forma, parecem, ironicamente, interferir no desenrolar da peça que, retornando a primeira camada, veio de um mito grego do qual todos sabemos o começo e o final.
É bem verdade que a repetição dos artifícios de estilo chega ao ponto de saturação e, num determinado momento, parece esgotado. No entanto, o longa deve ser encarado como um ensaio, um estudo (no sentido mais artístico do termo). É Resnais ensaiando o alcance de sua técnica em plenos 90 anos e mostrando que, quando se é gênio, o rascunho supera muita obra de arte pretensa por aí porque há sempre algo a mais a ser criado. E é claro que o elenco lucra com isso e brilha, repetindo cenas com diferentes nuances e permitindo que até quem não entende de atuação possa vislumbrar as diferentes nuances do ofício do ator.
Peregrinar por esses três interessantes filmes é ter a chance de pensar o quanto de ficção existe em nossas vidas e o quanto das nossas vidas é pura ficção. Uma divisão que parece óbvia mas que a boa arte sempre estará pronta para borrar, mostrando que tudo pode ser mais fantástico do que um primeiro olhar poderia sugerir.
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