*Este texto contém spoilers dos filmes de M. Night Shyamalan, inclusive de Fragmentado (2017)
Como a maior parte dos filmes de M. Night Shyamalan, Fragmentado é um conto moral, que traz seus personagens tendo que lidar com versões concretas de seus medos e fraquezas interiores. Quase uma bedtime story, para usar definição do próprio Shyamalan para A Dama na Água (2006). Casey (Anya Taylor-Joy), a protagonista deste novo filme, é uma adolescente que vive deslocada do mundo que a cerca, em decorrência dos abusos sofridos desde a infância, e que tem de enfrentar seus próprios demônios na forma de um maníaco, portador de 23 personalidades diferentes, que a sequestra e a mantém em cativeiro ao lado de duas outras garotas. Ela se assemelha muito, nesse sentido, ao Reverendo Graham (Mel Gibson), de Sinais (2002), que supera a morte da esposa e recupera a fé e a capacidade de liderança de seu “rebanho” diante de uma invasão alienígena; ao casal Elliot (Mark Wahlberg) e Alma (Zooey Deschanel), de Fim dos Tempos (2008), que restabelece comunicação enquanto sobrevive a um misterioso ataque da natureza contra a humanidade; à jovem Ivy (Bryce Dallas Howard), de A Vila (2004), que enfrenta o medo do desconhecido, representado por monstros que habitam o bosque vizinho ao seu vilarejo, para salvar a vida do homem que ama; mesmo ao Kitai (Jaden Smith), da ficção-científica, a princípio menos autoral, Depois da Terra (2013), que tem de sobreviver numa Terra inóspita para sair da sombra do pai e superar a morte brutal da irmã mais velha; e, claro, aos antagonistas David (Bruce Willis) e Elijah (Samuel L. Jackson), de Corpo Fechado (2000), que descobrem a si mesmos como super-herói e super-vilão, respectivamente, enquanto lidam com seus próprios pontos fracos (o trauma de um afogamento no primeiro caso, a fragilidade física e suas consequências no segundo).
A obviedade de tal semelhança com Corpo Fechado se dá por Fragmentado compor o universo do primeiro filme, ainda que essa ligação só seja explicitada na cena que encerra o segundo. Toda a construção da relação entre os dois personagens centrais de Fragmentado, Casey e Kevin (James McAvoy), equivale à maneira como Shyamalan pensa David e Elijah em Corpo Fechado: ambos os pares se reconhecem como iguais, ainda que colocados em polos opostos, já que excluídos da sociedade “normal”, tidos como freaks por não se comportarem conforme o esperado. David é um homem extremamente introspectivo e que mergulha ainda mais fundo nesse modo de ser ao se descobrir o único sobrevivente de um acidente de trem. Elijah passou a vida se escondendo, sendo protegido por si e pelos outros em razão da doença que carrega, responsável por enfraquecer seus ossos a ponto de torná-los quebráveis ao menor impacto (ele é, nesse sentido, o exato oposto do “inquebrável” David, ainda que igual no isolamento social). Casey e Kevin são vítimas de abuso por parte daqueles que deveriam amá-los (o tio dela, a mãe dele), desenvolvendo formas distintas de lidar com isso: Casey se fecha para o mundo enquanto fere o próprio corpo; Kevin desenvolve outras muitas personalidades que buscam protegê-lo de uma realidade externa ameaçadora. Daí a beleza da última cena dos dois juntos, em que o vilão, tomado por sua monstruosa 24ª personalidade, reconhece a garota como uma igual, ao se deparar com as marcas físicas que ela carrega no corpo.
Personagem portador de uma espécie de superpoder, Kevin funciona na mesma lógica de Corpo Fechado, que é, por sua vez, sugada das HQs. Ele também possui um ponto fraco, mesmo quando tomado pela faceta bestial denominada A Fera: a referência ao seu nome completo, que traz de volta à tona sua personalidade original, bondosa e confusa. Aliás, em tempos de franquias gigantescas inspiradas em quadrinhos, em que cada novo lançamento se revela como peça de um quebra-cabeça que nunca se completará, é interessante observar a capacidade de Fragmentado de se ligar a um filme pré-existente, constituindo, com ele, um universo maior, sem que, para isso, deixe de funcionar como narrativa independente, que consegue resolver nela mesma suas principais questões. A conclusão proposta por Shyamalan pode dar a impressão contrária, mas seu filme é, na verdade, mais sobre Casey que sobre Kevin – e o arco dramático dessa primeira se fecha belamente aqui, num olhar cheio de força para a policial que a resgata, anunciando a chegada da coragem necessária para denunciar o tio molestador depois de anos de abuso.
A percepção dessa centralidade do drama de Casey se dá, novamente, pela compreensão do cinema de Shyamalan como dotado de forte carga moral, não necessariamente num sentido negativo, mas no de se construir a partir de pequenas parábolas que buscam revelar embates próprios do humano. Por mais espaço que Kevin tenha na narrativa e ainda que seja a ponte necessária para o retorno a Corpo Fechado, ele representa, primordialmente, em Fragmentado, a exteriorização dos demônios íntimos da protagonista, que ela tem de vencer para seguir em frente na vida. Não surpreende, aliás, que essa abordagem escancarada do diretor, que hiperdimensiona e concretiza os conflitos de seus personagens de modo a tornar clara a mensagem advinda de sua superação – de novo, as histórias de ninar são a referência –, por vezes incomode tanto parcelas do público e da crítica. Há no cinema vulgarmente taxado como de entretenimento, em geral, e no baseado em HQs, especificamente, uma intensificação do uso do que o crítico Arthur Tuoto chamou de “artifícios de seriedade”, sobretudo a partir da trilogia O Cavaleiro das Trevas (2005-2012), de Christopher Nolan – sendo Logan (2017) o exemplo mais recente. Mesmo os coloridos e cômicos filmes do Marvel Cinematic Universe (MCU) sofrem disso, já que seus exemplares supostamente mais sérios e sofisticados, como Capitão América: Soldado Invernal (2014) e Capitão América: Guerra Civil (2016), são tidos como os melhores da franquia.
Shyamalan segue o caminho do discurso direto, verbalizado sem qualquer embaraço por seus personagens, o que, nesse contexto de excessiva contenção e (pretensa) sofisticação dramatúrgicas, pode ser tomado por cafonice. Há nos filmes do diretor um prazer com a contação de história, com outro tipo de artifício que não o da seriedade: o do jogo, de surpreender o espectador (ou “ouvinte”) com uma reviravolta inesperada que o leve a uma moral do que foi contado. Seu cinema segue, ao mesmo tempo, uma matriz hitchcockiana, no encanto com a manipulação do público (ainda que não haja nele a ironia, talvez tipicamente britânica, de Hitchcock), e outra spielberguiana, na obsessão pelo universo infanto-juvenil – presente não só nas crianças e adolescentes que protagonizam, por exemplo, Olhos Abertos (1998), O Sexto Sentido (1999), O Último Mestre do Ar (2010), Depois da Terra (2013) e A Visita (2015), mas na própria relação insistente com universos associados a essas faixas etárias, como o dos quadrinhos em Corpo Fechado e Fragmentado e o dos desenhos animados em O Último Mestre do Ar, além, claro, da explícita estruturação da narrativa de A Dama na Água como um conto de dormir – e na reiterada aposta em lições morais. Hitchcock e Spielberg, diretores que, como Shyamalan, foram criticados, em diferentes momentos da história do cinema americano, pelo excessivo comercialismo e vulgaridade – em razão da filiação a um gênero pouco nobre no primeiro caso e da propensão ao melodrama no segundo – de seus filmes.