Protestos, milhares de pessoas reunidas, bombas de efeito moral, ruas lotadas, vandalismo… Palavras que temos ouvido nos últimos dias devido à intensa onda de manifestações que tem tomado o Brasil pelo ápice da indignação de um povo cansado de ter seus direitos negados por quem faz suas leis e diretrizes.
O cinema já retratou incontáveis períodos de importância singular para a história de diferentes nações, incluindo o Brasil. Enquanto o país passa por significativas transformações sociais e políticas e milhões de pessoas saem às ruas em protestos e manifestações, é possível olhar para trás e recordar de momentos semelhantes eternizados em filmes essenciais à sétima arte e ao que representam. Neste momento de intensa efervescência popular, a Equipe Papo de Cinema listou dez grandes filmes que reconstituem movimentos político-sociais em diferentes partes do mundo. Confira as escolhas de cada integrante e contribua acrescentando outros títulos à nossa lista nos comentários.
O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925), por Marcelo Muller
Um dos filmes mais influentes da história, O Encouraçado Potemkin foi financiado pelo Estado, com fins de propaganda, e se insere na corrente do realismo socialista. Retrata a revolução de 1905 na Rússia Czarista, especificamente o motim dos marinheiros que tomaram o controle do navio Potemkin, rebelados ante a tirania de seus superiores. Carregado de ideologia, o longa possui diversos momentos emblemáticos da historiografia cinematográfica, entre os mais lembrados, a cena dos vermes que se imiscuem na comida dos marujos (símbolo da degradação social) e a famosa sequência da escadaria de Odessa, aludida por cineastas que reverenciaram ao longo dos anos sua exemplar dramaticidade obtida, sobretudo, pela montagem. Com O Encouraçado Potemkin, o diretor Sergei Eisenstein apresenta a quintessência de sua arte, fazendo não apenas evoluir o cinema enquanto expressão, mas também trazendo à luz discussões político/sociais imprescindíveis para que qualquer coletividade evolua plena, menos afetada por signos de dominação.
Assuntina das Amérikas (Brasil, 1976), por Pedro Henrique Gomes
Assuntina das Amérikas não é um filme diretamente em volta de um levante popular, mas engole a tropicália dos corpos, a revolução sexual, a convocação à rebeldia, o espírito de rebelião e libertação social que não pode cessar e que convoca os populares a olharem para o lado e a repensarem o estado das coisas. A produção de Luiz Rosemberg Filho é apenas uma centelha de vida, uma agitação popular que confunde, através de suas contradições (dialética), o olhar apressado (ora, a protagonista é uma prostituta), pois o filme, como já escreveu o próprio diretor, “é a história de uma procura externa”: é sempre algo maior do que parece ser, mas não é por isso que não existe objetividade e consciência em seus movimentos, em sua música, em sua dança, em sua confusão de imagens e sons. O caos extremo de suas imagens confabula com todo um ideário politicamente combativo e produtor de subjetividades, gerador de um processo não exatamente consolável, mas por isso mesmo irreconciliável com a agonia do brasileiro, com luta brasileira de todos os dias. Essa mesma que segue adiante.
Eles Não Usam Black-tie (Brasil, 1981), por Willian Silveira
“Esse pessoal não pensa. Esse pessoal atira“, diz Tião (Carlos Alberto Riccelli) ao ver a polícia abusar de um violeiro sem documentos. Guiados pela música de Adoniran Barbosa, feita especialmente para a peça homônima adaptada de Gianfrancesco Guarnieri, Tião e Maria (Bete Mendes) chegam em casa. A face da moça é toda tensão. Algo está para acontecer e, nesses tempos de ditadura, algo está sempre na iminência de acontecer. Estou grávida, ela sugere entre meias palavras, reticente. Tive medo, diz. O medo impera. Contra esse sentimento, Otávio (Guarnieri), pai de Tião, viveu às voltas com os movimentos sindicais. A sua luta, porém, não é a mesma do filho. Não agora, que Tião tem de pensar em Maria e na criança que está por vir. Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirszman, é o retrato inconcluso de um país tomado pelo autoritarismo e pela violência; do Brasil dividido entre aqueles que acreditam em mudanças e dos que mudaram a ponto de não mais acreditar. O sangue é herdado, os ideais não são. É o amor frente ao cerco do medo; o amor nos tempos de cólera.
Pra Frente, Brasil (Brasil, 1982), por Danilo Fantinel
No Brasil de 1970, enquanto a maior parte da população cantava um ufanista hino de futebol que pedia uma “corrente pra frente” em apoio à Seleção no caminho do tricampeonato mundial, correntes muito mais pesadas eram arrastadas nos porões do regime militar do governo de Emílio Garrastazu Médici. Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, reflete um duro momento de cerceamento social, no qual a violenta repressão policial era sistematicamente aplicada para a extração de confissões de acusados ou suspeitos de subversão. Enquanto a tortura institucionalizada calava vozes e castigava corpos e o desaparecimento de pessoas ampliava medos, o crescimento econômico e a Copa do Mundo contribuíam para a alienação política das massas. Paralelamente, núcleos ativistas pegavam em armas contra a ditadura. Neste ambiente, o filme retrata um típico caso de “homem errado”, no qual um inocente torna-se vítima. Jofre (Reginaldo Faria) é confundido pela polícia com um opositor político. Capturado, é barbaramente torturado para dar informações sobre a guerrilha. Sua mulher Marta (Natália do Valle) e seu irmão Miguel (Antônio Fagundes) recorrem a autoridades para obter ajuda, sem sucesso. O longa é preciso ao remontar um cenário complexo, dimensionando a brutalidade estatal (ancorada nos personagens de Carlos Zara, Milton Moraes e Ivan Cândido), os anseios libertários da esquerda armada (Elizabeth Savalla e Cláudio Marzo) e os primeiros passos da tomada de consciência social na figura dos protagonistas Jofre, Marta e Miguel, que passam a desafiar a sistemática repressora. Além disso, a obra enquadra as ligações financeiras do empresariado com os militares, o apoio norte-americano à repressão e a censura imposta à imprensa. No Brasil de 2013, em que multidões vão às ruas contra a corrupção institucional e por melhores serviços públicos de saúde, educação e transporte em meio aos exorbitantes gastos com os estádios da Copa do Mundo de 2014, Pra Frente, Brasil obtém uma atualização jamais imaginada.
O Que é Isso, Companheiro? (Brasil, 1996), por Rodrigo de Oliveira
O manifesto pacífico parece sempre ser a melhor opção. No entanto e infelizmente, a História nos mostra que foram necessários movimentos violentos para que algumas questões mudassem de forma definitiva. Durante a Ditadura Militar, muitas barbáries foram realizadas com a juventude que lutava contra o braço forte do governo repressor. Um grupo, farto desta realidade, bola um plano arrojado e bastante radical na esperança de mudar o status quo do Brasil: seqüestrar o embaixador norte-americano que vivia no país. A história destes revolucionários é contada em O Que é Isso, Companheiro?, longa-metragem assinado por Bruno Barreto e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro naquele ano. Ainda que tenha sido alvo de controvérsias pelo retrato um tanto brando da figura do torturador, o filme tinha nas boas atuações do elenco principal, capitaneado por Fernanda Torres e Pedro Cardoso, e na trama bem costurada seus principais atributos. Não bastasse isso, faz um registro importante de uma parte da História do Brasil que não deve ser esquecida jamais. Demorou algum tempo para que os cineastas do país começassem a mexer nas feridas da Ditadura. E O Que é Isso, Companheiro? é um dos títulos que representam esta tentativa de mudança.
Machuca (idem, 2004), por Renato Cabral
Ambientado no começo da década de 70 no Chile, Machuca é considerado um filme importante na cinematografia latina pelo resgate que traz e mais ainda por sua sutileza em contar a história de um período complicado pela ótica de duas crianças. Na história que se passa durante o governo de Salvador Allende, um período conturbado quando diversas passeatas são organizadas. Algumas em defesa do governador e outras contra, querendo tirá-lo do poder. Com o foco do filme de Andrés Wood em Gonzalo, um menino de classe média-alta que estuda em uma escola particular de padres, traz a polaridade de um país. Dividido entre Allende e um novo governo de direita e ou ainda, rico e também extremamente pobre. Exemplificado quando um dos religiosos da escola decide abrir vagas para que outros meninos sem condições financeiras possam estudar no local. E assim, Gonzalo conhece Pedro Machuca. Inicialmente inimigos na escola e com um abismo social entre eles, se tornam amigos e um conhece o mundo do outro, o que trazem de diferenças e igualdade, tudo enquanto a nação chilena vai às ruas decidir o futuro do país. Vale lembrar que Allende acabou caindo e ainda nos anos 70 se instaurou a ditadura de Pinochet que durou até o começo dos anos 90.
O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Brasil, 2005), por Robledo Milani
Revoluções, rebeldia, protestos, debates, confrontos. Esses não são assuntos de crianças… ou será que são? Ao menos no belo e comovente O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), primeiro trabalho “sério” de Cao Hamburger, os pequenos se envolvem, sim, nos dilemas sociais dos adultos – por mais que esses tentem mantê-los afastados. As ‘férias’ do título nada mais são do que uma desculpa dada pelos pais de Mauro ao menino quando precisam fugir para a clandestinidade, durante o período de chumbo da ditadura militar no Brasil. Estamos em 1970, o ano em que fomos tricampeões da Copa do Mundo, ao mesmo tempo em que a repressão e os conflitos armados se intensificaram no país. Pão e circo de um lado, lutas, mortes e desaparecimentos do outro. Mauro vai aos poucos vislumbrando essa realidade, ao mesmo tempo em que o público começa a perceber os esforços e sacrifícios de poucos para manter o bem estar de muitos. Selecionado para representar nosso país na disputa pelo Oscar de Filme Estrangeiro, foi também exibido no Festival de Berlim e premiado nos festivais do Rio, São Paulo, Oslo, Lima, Huelva, Havana, Cartagena e no Grande Prêmio Brasil de Cinema. Um filme que deixa qualquer brasileiro com orgulho, tanto pelo que demonstra na tela quanto pelo que conquistou fora dela.
Milk – A Voz da Igualdade (Milk, 2008), por Matheus Bonez
Se São Francisco é considerada o paraíso para a comunidade homossexual norte-americana (apesar dos pesares), muito se deve à Harvey Milk, primeiro gay assumido a ser eleito para um cargo político nos EUA. Aliás, poderia dizer mais: Milk deu o pontapé inicial para que o movimento ganhasse a amplitude e o reconhecimento que tem hoje em todo o mundo (mesmo que a homofobia ainda seja assustadoramente inflamada por muitos). E este longa-metragem não poderia ter nomes mais marcantes em sua condução: o cineasta Gus Van Sant, gay assumido, e Sean Penn no papel-título, reconhecido não só pela categoria de suas atuações como também pelo ativismo em causas sociais. Tanto que, ao ganhar o Oscar de Melhor Ator por este trabalho, Penn soltou uma frase que derruba qualquer um: “Aos que votaram contra o casamento gay, envergonhem-se”. Sentença mais do que bem-vinda, especialmente porque na época de lançamento do filme e o consequente período de premiações, discutia-se na mesma São Francisco de Milk o impedimento da união civil por casais de mesmo sexo. Apesar do foco ser na vida do personagem, Milk é um filme poderoso por mostrar ao mesmo tempo a forte militância de uma minoria que poucas vezes teve voz para reivindicar seus direitos. Uma luta que permanece até hoje, mesmo com os avanços que a sociedade (aparentemente) mostra em suas leis de forma global.
No (idem, 2012), por Conrado Heoli
Filmes como Tudo Pelo Poder (2011) e Mera Coincidência (1997) apresentam perspectivas diferentes para expor a influência ímpar da propaganda na condução de ideais e valores políticos. No, de Pablo Larrain, faz o mesmo a partir de um impressionante fragmento da história chilena numa obra política e pessoal, um estudo sagaz de como as mídias podem manipular a qualquer um para quaisquer fins. No se ambienta em 1988 e reconstitui, a partir de uma estética inventiva, os dias que marcaram o fim do governo ditatorial e repressivo de Augusto Pinochet. Larrain, cineasta também responsável por Tony Manero (2008) e Post Mortem (2010), recebeu incontáveis láureas por seu excepcional retrato do complexo período, entre eles o prêmio da Quinzena dos Realizadores em Cannes e uma merecida indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Gael Garcia Bernal interpreta René Saavedra, personagem ficcional inspirado pelos cérebros reais por trás da campanha publicitária do “Não”, que contribuiu com a derrocada de Pinochet ao indicar que seu mandato não fosse continuado. Ainda que reitere a relevância da propaganda na política, No permite a interpretação de que nada supera a verdadeira força popular, que se encontra em seus ideais – e que por vezes devem ser gritados às ruas para se tornarem reais.
Os Miseráveis (Les Misérables, 2012), por Dimas Tadeu
Que terra melhor do que a França, palco de uma das maiores revoluções civis da história humana, para ser cenário de um filme que tem nos seus personagens (e no seu elenco) sua maior força motriz, tanto do ponto de vista estético como da história que conta? É difícil não sentir o espírito se inflamar politicamente quando o excelente ensemble de Os Miseráveis marcha pelas ruas de uma Paris cenográfica catando uma canção que anuncia “uma vida por começar quando o amanhã chegar“. Mesmo o antagonista, Javert (Russel Crowe), despreparado para cantar, faz lembrar autoridades eventualmente sem preparo para dialogar com seu povo. Uma história sobre sofrimento e tragédia redimidos por meio da força que só pode vir da união.
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