20141117 o sal da terra papo de cinema2

Crítica

Volta e meia o cinema se apropria de um mesmo tema para construir dois filmes diferentes. Há pouco tivemos O Duplo (2013) e O Homem Duplicado (2013), sobre um homem comum que não sabe o que fazer ao se deparar com um sósia, e Invasão à Casa Branca (2013) e O Ataque (2013), ambos sobre atentados terroristas na sede do governo norte-americano. Mas há muito mais, é claro, e até já fizemos um Top 5 aqui no Papo de Cinema sobre o assunto. Mas o que agora percebemos é que essa duplicidade de interesses sobre temas em comum não se restringe apenas à ficção. Afinal, após o interessante Revelando Sebastião Salgado (2013), que foi premiado no Festival de Gramado e exibido na sessão de abertura do Festival de Brasília, o mais famoso fotógrafo brasileiro de todos os tempos volta a ser tema de um novo documentário em O Sal da Terra, mas agora repleto de glamour internacional. E o melhor: essa nova dimensão que o trabalho do artista recebe através desse olhar ao mesmo tempo próximo e estrangeiro encontra reflexo nas qualidades inegáveis desse trabalho.

A direção de O Sal da Terra foi dividida entre um novato – Juliano Ribeiro Salgado, cujo principal crédito é ser filho do biografado – e o veterano Wim Wenders, realizador dos aclamados documentários Buena Vista Social Club (1999) e Pina (2011), além de ser experiente também em tramas ficcionais, como comprovam obras cultuadas como Asas do Desejo (1987) e Paris, Texas (1984). Essa divisão de tarefas parece ter sido fundamental para o sucesso do projeto. Afinal, enquanto um cuidou da parte íntima da narrativa, explorando com cuidado o homem por trás das fotos, aquele que muito pouca gente conhece, o outro, assumindo com curiosidade uma posição distanciada, conseguiu se focar no trabalho deste e no impacto de sua arte. O filme, assim, vai se construindo aos poucos, sem pressa nem morosidade, alternando entre momentos de pura consagração com outros de sincera curiosidade. O Sebastião Salgado que sai dessa análise dupla é um homem revirado ao avesso, que se entrega de vontade própria permitindo uma proximidade rara em sua trajetória.

Sebastião Salgado não nasceu fotógrafo, assim como a maioria das pessoas não decidiu instantaneamente ser isso ou aquilo na vida. Ele foi economista, se mudou do Brasil para a França, constituiu família e encontrou na esposa a parceira ideal para perseguir um sonho até então deixado de lado: a fotografia. Foi quando decidiu dar uma guinada na sua história e recomeçar do zero. As jornadas ao redor do mundo que resultaram em cada um dos seus livros/exposições rendem, individualmente, muito pano para manga. Há as inspirações, o que o artista buscava em cada destino, o que o fazia largar tudo para enveredar pelo gélido polo norte ou pelas áridas paragens africanas, e como lidar a cada retorno na busca pelo próprio âmago. Muito disso vem de uma busca interior que significava, em última instância, a volta ao próprio lar. Quando decide retornar para o interior de Minas Gerais e ali dar início a um projeto de reconstrução sócio-ecológico, deixa claro que nunca foi apenas um observador passivo da realidade ao redor, e parte para a ação, decidido a fazer não apenas o registro, mas também a diferença.

Revelando Sebastião Salgado tinha direção de Betse de Paula e foi realizado com pouco tempo de execução, após uma série de visitas previamente agendadas ao apartamento do fotógrafo, quando entrevistas e algumas imagens foram feitas. Deste material coletado, elaborou-se um filme que, a despeito do seu formato tradicional, apresenta muitas surpresas e, por que não, revelações a respeito do protagonista, tal qual prometido no título. O Sal da Terra, por outro lado, consegue ser mais profundo justamente por conseguir esse olhar íntimo, oferecendo uma visão rara do que Salgado é enquanto pessoa e profissional, mas sem nunca deixar de lado o pai e marido. E, felizmente, não se contenta apenas com isso, indo além ao investigar o que fez dele um dos grandes fotógrafos do nosso tempo, ainda mais numa realidade em que essa prática parece estar desaparecendo graças à banalidade do seu acesso. É, portanto, por mostrar que talento é imortal e pode vir de qualquer lugar, que este filme consegue se destacar de tantos similares e se mostrar único no retrato que promove do artista, eternamente jovem, independente da idade – dele ou nossa.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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