Crítica

Realizado em 1944, enquanto os Estados Unidos e tantos outros países sofriam os impactos da 2ª Guerra Mundial, Um Barco e Nove Destinos (1943) foi baseado em um conto de John Steinbeck sobre diferenças, medos e esperança. Carregado dos truques de câmera tão característicos de Alfred Hitchcock, o filme se ambienta inteiramente em um barco salva-vidas, que vaga sem rumo no Atlântico Norte, onde um grupo de nove pessoas se refugia depois que o cargueiro em que estava é afundado por um navio alemão. A tensão tipicamente hitchcockiana se instala quando o grupo resgata um náufrago e descobre que ele é o capitão da embarcação inimiga. Inclinados a mantê-lo a bordo como um gesto de humanidade e por conta de suas qualidades como marinheiro, os tripulantes lidam com uma suspeita iminente de que o novo passageiro pode guia-los para o território inimigo.


Um Barco e Nove Destinos tem como protagonista a grande atriz teatral Tallulah Bankhead, que empresta todo seu enigmático perfil de femme fatalle para conduzir a tensa narrativa deste suspense. Com o espaço diminuto, todos os outros personagens ganham grande tempo de tela, representados por um afinado elenco que ainda conta com as performances de William Bendix, Walter Slezak, Mary Anderson e a carismática Heather Angel.

Steinbeck, escritor norte-americano vencedor do Nobel de Literatura em 1962, já tinha outras de suas obras adaptadas em grandes filmes, como As Vinhas da Ira (1939) e A Leste do Éden(1952). Com um inteligente roteiro de Jo Swerling, revisado pelo consagrado escritor Ben Hecht e merecidamente indicado ao Oscar, a produção revela uma complexidade técnica que apenas Hitchcock e sua dinâmica linguagem cinematográfica poderiam dar conta nos anos 1940. Entre os principais obstáculos do filme, o confinamento dos protagonistas e algumas desafiadoras sequências aquáticas foram rapidamente superadas pela maestria do diretor e sua equipe, que se valeram muito bem nas inserções de back-projections para dar conta das grandes embarcações e outros planos de fundo.

Ainda que não seja devidamente apontado como um verdadeiro suspense hitchcockiano, talvez por não explorar os temas mais recorrentes das obras máximas do diretor, Um Barco e Nove Destinos merece reconhecimento por ser o primeiro filme norte-americano do cineasta esteticamente inovador, diferentemente de outras produções mais clássicas realizadas em seus primeiros anos nos Estados Unidos, como Rebecca (1939), Suspeita (1941) e A Sombra de Uma Dúvida (1943).

Como o filme se passa inteiramente em alto-mar e foi gravado em um tanque de água dentro do estúdio, Hitchcock eventualmente chegou ao dilema de como se daria sua já clássica figuração. Pela complexidade e riscos envolvidos para aparecer como um corpo boiando, sua primeira ideia, a presença do mestre do suspense no filme ocorre numa rápida situação cômica, quando ele estampa um anúncio publicitário para um produto de emagrecimento no jornal que Gus Smith está lendo. Esta permanece como uma de suas gags mais criativas. A cômica aparição de Hitchcock era também uma piada interna, que fazia referência a uma dieta que reduziu seu peso de 130 kg para 90 kg. Em decorrência deste cameo, após o lançamento do filme o mestre do suspense se viu cercado por pessoas desejosas de obter os resultados do diretor com o produto do filme, sem saber que o tal Reduco era um emagrecedor fictício.

Longe de atingir o manequim de Cary Grant, seu desejo confesso na época, o diretor foi lembrado pelos esforços técnicos e narrativos na condução de Um Barco e Nove Destinos quando recebeu sua segunda indicação ao cobiçado Oscar de Melhor Diretor – prêmio que nunca receberia. Independentemente de qualquer estatueta, o nome de Alfred Hitchcock permanece eternizado entre os maiores realizadores de todos os tempos, além de servir como sinônimo ao gênero que o cineasta ajudou a construir.

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