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Sinopse

A história da conquista de Westeros, também conhecida como a Dança dos Dragões. Os meios-irmãos Aegon II e Rhaenyra lutam pelo trono após a morte do pai Viserys I. E o resultado dessa batalha afeta gerações posteriores.

Crítica

Dar continuidade à mitologia construída com sucesso por Game of Thrones (2011-2019). Essa era “somente” a missão de A Casa do Dragão, derivado que retorna ao passado para mostrar os dias em que a casa Targaryen (conhecida por comandar os Sete Reinos montada em dragões) era respeitada pelos principais territórios de Westeros. Tratava-se de uma missão difícil, em parte até inglória, essa a da nova série. Afinal de contas, era preciso fazer algo de qualidade e ainda atender às expectativas de um público cada vez mais reivindicador de autoridade sobre a propriedade intelectual alheia. O que não falta são fãs ávidos por serem contemplados e cada vez menos desafiados por leituras que podem divergir em certos pontos das suas. Pensando na envergadura da tarefa, o spin-off mostrou que é possível aliar o espetacular e o mundano, assim reprisando o que Game of Thrones tinha de melhor. Tudo começa com uma disputa pela sucessão do rei. De um lado, Viserys (Paddy Considine) e, do outro, Rhaenys (Eve Best), ambos credenciados a ocupar o tão cobiçado Trono de Ferro. A tradição patriarcal favorece o homem e o resultado mais interessante dessa contenda inicial é que durante a primeira temporada Rhaenys é assolada pela sombra da “quase rainha”, o que lhe dá uma espessura dramática singular. Essa personagem é fundamental nos joguetes políticos que assumem o protagonismo.

Especialmente a partir da quinta temporada, Game of Thrones perdeu o prumo por simplificar demais os aspectos humanos em meio às brigas por reinos e aos cumprimentos de profecias. Talvez para atender um público cada vez mais ávido por ação desenfreada a grandiosa, os showrunners cederam às tais expectativas e esvaziaram certos pilares do discurso palaciano. Felizmente, em A Casa do Dragão essa essência está preservada, claro, em que pese a exuberância promovida pela frequência dos imponentes dragões. Enfim, as disputas políticas são mais importantes do que a suntuosidade garantida pelos ótimos efeitos digitais. E é justamente a manutenção dessa ordem de prioridade que garante o êxito da primeira temporada. Nem bem a disputa sucessória é resolvida pacificamente, já começa a fervilhar outra. Sim, pois Viserys não tem um filho homem e nomear como sucessora a sua primogênita Rhaenyra (Milly Alcock) é romper com a tradição de homens no trono. E um dos principais reclamantes é Daemon (Matt Smith), irmão do rei e reivindicante do direito masculino histórico à regência. Aliás, esse provavelmente é o personagem mais interessante da série, sobretudo por seu caráter irascível e a inquietude de sua ambição. Ele parece carregar sempre uma disposição ao conflito e, consequentemente, à tragédia, nisso sendo um contraponto à benevolência de seu irmão.

A Casa do Dragão cozinha muito bem essas intrigas palacianas que assumem positivamente a linha de frente. Além do caçula invejoso, existe a maquinação de Otto (Rhys Ifans), o conselheiro que ocupa o cargo de Mão do Rei, ou seja, aquele que deveria ajudar o monarca a enxergar painéis complexos e tomar decisões benéficas aos súditos. No entanto, isso não acontece, exatamente porque Otto tem uma desmedida fome de poder, o que o leva, por exemplo, a utilizar friamente a própria filha como subterfúgio para escalar os degraus de sua linhagem rumo ao Trono de Ferro. À medida que alianças são forjadas e lealdades são questionadas, a série caminha compassadamente em direção a outra batalha pela sucessão real. E é nesse ponto que a qualidade da interpretação de Paddy Considine sobressai. O seu Viserys é um rei que parece incorporar a obsolescência forçada dos ritos atrelados à governança. Sim, pois enquanto confabulações são feitas por todos os lados para definir o destino de Westeros além dos pactos juramentados diante desse regente, o ocupante do lugar mais cobiçado dos Sete Reinos se enche de feridas, pústulas, perde cabelo (o tão importante cabelo dourado dos Targaryen) e vai definhando. É uma metáfora da unidade quebradiça do reino. Até o ponto de uma cena brilhante em que o ator mostra a grandeza de um homem que luta contra a morte para honrar a sua posição. Contudo, justiça seja feita: todos os membros do elenco estão ótimos em seus respectivos papeis.

Tão alardeado como um elemento importante de Game of Thrones, o sexo também aparece em A Casa do Dragão, menos acrobático e exibicionista, mas ainda importante ao exercício de poderes e desejos. Nesse sentido, o ponto alto é a tentativa de corrupção da sobrinha Rhaenyra pelo tio Daemon num dos inferninhos da plebe. Aliás, o sexo e o casamento são situados como moedas de troca que têm mais a ver com as posições a serem ocupadas nesse tabuleiro político do que enquanto fontes de prazer e/ou felicidade. Nas poucas vezes em que os personagens agem de acordo com seus instintos, sem perceber o sexo como forma de barganha por mais influência, os atos tendem a causar constrangimentos futuros. Como quando temos um considerável salto no tempo em que boa parte do elenco é trocada e a herdeira nomeada passa a ser interpretada por Emma D'Arcy. A linhagem bastarda decorrente das aventuras extraconjugais dela – consentida pelo marido que também tem suas escapadas de prazer – é frequentemente o motor de discussões a respeito de sucessões invariavelmente atreladas à consanguinidade. Alguns personagens perdem espaço nessa mudança, como o cavaleiro juramentado Criston Cole (Fabien Frankel) que, de interesse amoroso, passa a ser um despeitado empenhado em boicotar Rhaenhyra – sobretudo ao se juntar com a atual rainha, Alicent (Olivia Cooke).

Realmente, o que de mais rico e pungente A Casa do Dragão tem é essa disposição de encarar a complexidade humana dos personagens que reivindicam cargos e reconhecimentos considerados sagrados por uma tradição baseada em conveniências. Tanto que é muito orgânico e bem articulado o protagonismo feminino na série, a subversão da lógica patriarcal que sempre privilegia os homens como mandatários, ocupantes de tronos e usuários de coroas. Alicent, Rhaenyra, Rhaenys e Laena (Nanna Blondell) são algumas dessas mulheres que precisam lutar contra os enferrujados grilhões da misoginia além de enfrentar os inimigos políticos. Os showrunners criam um painel suficientemente rico de intrigas, traições, amores interditados e trágicos sensos de dever, sem negligenciar a ação e a violência desse mundo orientado pela lei dos mais forte. Se a primeira temporada começou com uma disputa política pelo Trono de Ferro, ela termina com uma guerra iminente pela sucessão. Sintomática mudança de rumo. Sinal de novos tempos. De um lado, um jovem que não pretende ser rei, apenas ter privilégios; do outro, a que foi prometida ao trono, mas cuja herança é questionada pelo fato de ser mulher. No fim, a pergunta que não quer calar é: do que será capaz a mãe duplamente enlutada para garantir seus direitos? Que venha a segunda temporada, pois a primeira cumpriu com êxito a sua dura missão.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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