Crítica
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Sinopse
Na cidade fictícia de Itaguaraí, a série aborda a trajetória de um adolescente que deseja tornar-se um humorista. Em um contexto tipicamente brasileiro, Jaime conhece um engraçado motoqueiro, Zula, que passa a ser seu tutor e a lhe aplicar lições a fim de fazê-lo chegar a seu objetivo.
Crítica
Criar animação no Brasil é uma tarefa árdua que requer cineastas cheios de força de vontade e muita disposição para fazer as coisas darem certo. Mesmo com grandes nomes no circuito, como Otto Guerra e Alê Abreu, o país ainda é imaturo quando se trata deste estilo. Não por falta de criadores e produtos, muito pelo contrário. Sabe aquele preconceito geral em relação ao cinema brasileiro? Pois eleve a potência quando se trata de desenhos animados. Mas é claro que bons trabalhos não faltam, sejam nas telonas ou telinhas. A Vida de Jaime, criada por Luciano Duarte e Pedro Fontes em parceria com Vinícius Fonseca, é um belo exemplo de que o gênero tem muita força se depender dos talentos nacionais, devendo nada para produções de fora.
Os doze episódios da primeira temporada da série estão sendo disponibilizados pelo YouTube. Em tempos de serviços por streaming, a ideia não poderia ser mais acertada, já que a roupagem da animação tem traços de Os Simpsons (1989-) e Rick & Morty (2013-) – inclusive com homenagem direta em um dos episódios a esta série norte-americana – mas com um sotaque e uma história bem brasileiras, podendo atingir todo o globo sem medo. Jaime, o protagonista, é um adolescente que vive sem grandes emoções na fictícia cidade de Itaguaraí. O sonho dele é se tornar um comediante de stand up, e para isso conta com a ajuda de Zula (o melhor personagem da série), um motoqueiro que faz trambiques e fala palavrões a torto e direito, mas tem um bom coração por trás da fachada marrenta.
Enquanto os episódios dão conta de transformar a personalidade de Jaime gradativamente, de alguém totalmente sem sal e que fala pra dentro em alguém com uma verve realmente humorística, o público tem a chance de conhecer mais a fundo outros personagens excêntricos que tomam conta da série. Os pais do protagonista parecem viver sob dogmas religiosos e políticos. A mãe é daquelas que fala "bandido bom é bandido morto", mas na contradição de ressaltar que ninguém merece morrer. O pai é ex-cantor frustrado e fã de Roxette que virou motorista de ônibus, além de cheio de preconceitos, especialmente contra uma professora transgênero da escola do filho. Há o doutor Posaderas, um personagem que claramente parece saído das páginas de algum conto de Nelson Rodrigues. As mulheres vivem casamentos frustrados e são cheias de neuroses causadas pelos "machos" de suas relações, que não passam de grandes bundas-moles sem personalidade nenhuma.
A lista de gente maluca e que parece viver fora da realidade é extensa, e na maioria dos episódios os criadores brincam mais ainda com isto ao inserirem clichês bem trabalhados, como o padre popstar que não fala nada com nada em suas pregações, um assaltante de ônibus que parece ambientar a história na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, um garoto riquinho e mimado rechaçado pelos pais e que compensa a carência tentando (e nunca conseguindo de fato) humilhar os outros, além de cameospontuais, como os barbeiros barbudos que deixam todos literalmente as suas caras (e barbas e bigodes), num reflexo da moda que assola 80% dos homens em todo o mundo.
É um festival de falta de pudores que lembra South Park (1997-) muitas vezes (inclusive o irmão mudo parecendo uma referência quase direta ao Kenny) e Family Guy (1998-). Os traços dos personagens, com olhos esbugalhados, remetem mais ainda às séries norte-americanas, mostrando que esta linguagem é universal, especialmente ao abordar temas tão sensíveis dos brasileiros nos roteiros. Ônibus queimados, universidades fechadas, protestos em vários níveis, escolas sucateadas, moradores de rua e pedintes a cada esquina. O trio responsável pela animação consegue dar conta disso e muito mais com o que parece ser um arremedo de história, um McGuffin, para ilustrar toda a sociedade brasileira a partir do microcosmo de Itaguaraí.
Não é uma tarefa fácil manter esta crítica ácida com um humor ferino, mas os produtores dão mais do que conta do recado. É claro que muitas destas questões são apenas pontuais, sem grandes aprofundamentos, mas que dão a clara ideia do quanto Luciano Duarte, Pedro Fontes e Vinícius Fonseca sabem dos principais problemas sociais do país. E o melhor: não precisam fazer um tratado sobre o assunto, mas colocá-los em evidência e saber como afetam o Brasil como um todo. Não à toa é uma animação adulta, que vai além dos palavrões. Talvez a ideia principal dos rapazes nem seja tão crítica e queiram apenas fazer o espectador rir por dez minutos de cada episódio. Porém, o tiro consegue ser mais fundo ao colocar em desenho e bons diálogos questões tão caras a nós e que parecemos varrer para debaixo do tapete. O triste quando acaba é ter que esperar pela segunda temporada. Que venha logo.
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