Crítica


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Sinopse

Após a morte inesperada de sua esposa, Tony decide mudar seu modo de viver. O cara legal logo se torna um homem impulsivo que diz e faz o que tem vontade. A situação se complica quando as pessoas ao redor de Tony tentam transformá-lo em uma pessoa melhor novamente.

Crítica

O comediante britânico Ricky Gervais é amplamente reconhecido pela falta de papas na língua. Suas apresentações, bem como as ocasiões em que foi mestre de cerimônias de festividades como o Globo de Ouro, são marcadas por piadas potencialmente incômodas. Em After Life, escrito, dirigido, produzido e estrelado por ele, a controversa persona pública é projetada em Tony (Gervais), morador de uma pequena cidade inglesa que não encontra motivos para viver após a morte de sua esposa. Trabalhador de um jornal minúsculo, daqueles cuja tiragem é distribuída gratuitamente, lança diariamente aos quatro ventos sua miserabilidade de viúvo. Para ele o suicídio será a cereja do bolo de uma existência, dali em diante, guiada pela sinceridade mordaz. Doa a quem doer, profere absurdos a vizinhos e colegas, apontando implacavelmente ignorâncias sem preocupar-se com a nódoa deixada nos outros. De acordo com o sujeito, ser bom apenas sinaliza uma fraqueza.

After Life se beneficia da exatidão com a qual Gervais se encaixa novamente nesse papel do irascível, no fundo, carismático, o capaz de falar as verdades interditadas pelas regras de convivência. Tony oscila perigosamente entre a honestidade e a grosseria, não se importando tanto ao descambar irresponsavelmente de uma a outra. Nesse sentido, a série é bastante corajosa, mesmo que evidentemente estejamos frente a um protagonista fraturado em busca de algo que lhe permita apresentar de novo sua personalidade bem-humorada e menos obscurecida. E esse destemor é esgarçado no instante em que Tony decide permitir que um coadjuvante, com o qual tem bem mais afinidades do que gostaria, leve a cabo o plano de drogar-se à overdose. Por um lado, há a questão do livre-arbítrio, de permitir a outrem efetivar um desejo impossibilitado por uma questão meramente de natureza financeira. Uma atitude que vai ao encontro da preservação de liberdades individuais. Por outro, a comodidade de aferrar-se ao discurso anarquista ao invés de oferecer a mão a quem está precisando dele.

Com um texto delicioso, After Life tem instantes hilários, como quando Tony inicia uma conversa com a colega sobre a existência de Deus. O niilismo do protagonista praticamente deixa a interlocutora sem maiores áreas de escape, nutrindo principalmente indagações a respeito da origem das divindades e do porque umas – leia-se as judaico-cristãs – são cristalizadas no imaginário ocidental como inquestionáveis, à medida que as demais acabam preteridas. A peculiaridade dos coadjuvantes também é uma qualidade do programa. É fácil se apegar a essas pessoas simples, algumas com participações pontuais, mas ainda assim marcantes. Lenny (Tony Way), o colega de redação que passa os dias comendo; Matt (Tom Basden), o chefe preocupado com a felicidade do ex-cunhado; Sandy (Mandeep Dhillon), a novata que observa a rotina com os olhos frescos; Diane (Diane Morgan), a encarregada do marketing que é fã número um de Kevin Hart; Lisa (Kerry Godliman), a prostituta (funcionária do sexo, melhor dizendo), uma fortaleza vulnerável, a batalhadora que lhe aponta caminhos.

O pai de Tony (David Bradley), vitimado pelo Alzheimer, o psiquiatra (Paul Kaye) que não é competente como deveria, e o carteiro folgado (Joe Wilkinson), embora menos constantes, são figuras igualmente importantes, cada um à sua maneira, dentro dessa fauna que ainda conta com a colega de cemitério (Penelope Wilton) e a enfermeira (Ashley Jensen). Sempre centralizando a ranzinzice do protagonista e seu comportamento egoísta, After Life se equilibra sensivelmente entre comédia e drama. Difícil conter as lágrimas sempre que o jornalista recorre ao vídeo de despedida da amada para possivelmente ancorar-se naquilo lido como a única coisa sólida restante. As visitas aos moradores que supostamente têm histórias dignas de impressão no jornal são impagáveis, tanto pelos absurdos quanto por conta da capacidade de adensar o enfado do protagonista. Exemplos disso a mancha na parede que “parece” Kenneth Branagh; o bebê “semelhante” a Adolf Hitler; o arroz-doce feito com leite materno; o sujeito que mora no ambiente entulhado de reminiscências do passado.

Agridoce, After Life aborda temas espinhosos, tais como melancolia, morte, depressão e suicídio por um prisma multifacetado, obviamente sensível à suas gravidades, mas resguardando um espaço generoso para pontualmente enquadrá-los com a moldura do ridículo. Para Tony soa menos penoso despistar a dor ao extravasa-la em agressividade. Além disso, rechaçando estabelecer vínculos, supostamente se protege de infortúnios análogos. Por medo de viver, ele avacalha o coreto. Já vimos esse tipo de resposta à dor em outros personagens da televisão e do cinema, mas Ricky Gervais confere às circunstâncias e a essa matriz seu reconhecido toque autoral. Contando com o respaldo do elenco de apoio, cria uma excelente surpresa em meio ao manancial agigantado de programas oferecidos em streaming. Corre o risco de ser pouco visto, pois a concorrência é voraz, mas se trata de ótima pedida aos que gostam de sofisticação travestida de simplicidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.