Crítica


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Sinopse

No futuro, a sociedade se acostumou à prática da troca de corpos. Após armazenar a consciência de uma pessoa, ela pode ser transferida a outra "capa", podendo viver várias vidas. O mercenário Takeshi Kovacs acorda após 250 anos em outro corpo. Além de se adaptar a esta situação e à nova sociedade, ele é contratado por um homem riquíssimo para descobrir o autor de seu próprio assassinato. Tak conta com a ajuda de uma policial mexicana, um ex-militar tentando ajudar sua filha e um robô equipado com inteligência artificial.

Crítica

E se fosse possível viver… para sempre? A mítica fonte da juventude se torna real em Altered Carbon, série baseada no livro homônimo de Richard K. Morgan, cuja primeira temporada, composta por dez episódios com 50 minutos cada, em média, estreou em 02 de fevereiro na plataforma streaming Netflix. Só que ao invés de um elixir, uma fórmula ou uma poção mágica, a eternidade está ao alcance de todos, desde que tenham condições de pagar por ela. E a sociedade, já naturalmente dividida, neste futuro distópico se torna ainda mais cruel e distorcida. As possibilidades, como se percebe, são múltiplas. Bem exploradas visualmente, carecem, no entanto, de um texto mais forte que justifique o investimento que se faz visível. É de se lamentar que um cenário tão rico acabe servindo de espaço apenas para um desenrolar de acontecimentos um tanto confusos na superfície, mas que, no geral, resumem-se a um bom e velho esquema de gato e rato. Clichê, mas não de todo decepcionante. Apenas distante das apostas envolvidas.

Takeshi Kovacs é um rebelde. Lutou para defender a irmã de um padrasto abusivo, viu sua infância acabar quando aceitou migrar para uma milícia de elite, ingressou posteriormente em um grupo ainda mais avançado de militantes contra a ordem estabelecida e está acostumado a ser testado até o limite de sua capacidade. Mesmo assim, eventualmente acaba sendo pego, e a sentença é a morte. Ele não permanecerá nesse estado para sempre, no entanto. E, após 250 anos hibernando, é despertado, agora em um novo corpo. Pois, nessa realidade, o que importa é o cartucho, um dispositivo mecânico instalado na base da nuca que registra memórias, emoções, experiências e sentimentos de cada indivíduo. Se o corpo – ou capa, como agora o chamam – é danificado, muito simples: basta substituí-lo por outro. O procedimento, no entanto, está longe de ser barato e acessível a todos. Assim como as diferenças religiosas, que se impõem com ainda maior fervor, deixando claro que, para alguns, essa sobrevivência, ao invés de ser vista como um milagre é, sim, uma danação eterna.

Kovacs (Joel Kinnaman) é despertado pelo milionário Laurens Bancroft (James Purefoy), membro de uma classe abastada – os Matusas, de Matusalém – que prefere viver em residências tão aos céus que se recusam a pisar em solo firme. Os demais – apropriadamente chamados de Terrenos – lutam diariamente por uma chance ao sol. Bancroft deseja descobrir quem o matou – sua última capa foi assassinada, porém nos seus registros não há vestígios de quem teria cometido o crime – e acredita que Takeshi é o homem certo para o trabalho. Solitário, caminhando por vielas escuras, irresistível para as mulheres e dono de um casacão de gola alta, tem-se no protagonista o retrato futurista de um detetive particular. A série faz bom uso disso, emulando o cultuado Blade Runner: O Caçador de Andróides (1982) em sua direção de arte, porém abusando de uma narração em off que mais nos aproxima dos clássicos do gênero estrelados por Humphrey Bogart.

Criada por Laeta Kalogridis (roteirista de Ilha do Medo, 2010, e produtora de Avatar, 2009), Altered Carbon é uma boa mistura das influências da sua realizadora: uma trama de mistério envolta por um contexto futurista. Kinnaman se esforça para os desafios que o papel lhe exige, e não há como dizer que não está bem, principalmente na parte mais física, tanto nas sequências de luta como nas altas doses de nudez – ele aparece pelado em ao menos metade dos capítulos. Como ator, no entanto, ele é visivelmente limitado, e cientes disso os diretores não exigem mais daquilo que está ao alcance dele. Melhor se saem Chris Conner, como a inteligência artificial Poe, sempre disposto a ajudar o protagonista, injetando sem exageros algumas bem colocadas doses de humor, ou Dichen Lachman, a irmã do herói que possui uma agenda muito particular. É difícil lê-la de acordo com as intenções declaradas, e isso colabora bastante, principalmente na segunda metade da temporada, com o desenrolar dos acontecimentos.

Se por um lado Altered Carbon começa como uma história de detetive, logo essa trama é relegada a um segundo plano. Kalogridis está mais interessada em discutir os efeitos dessa realidade alternativa e até que ponto ética e moral seguem sendo conceitos válidos quando não existe mais o que se perder como pena por erros ou deslizes. O próprio tempo se torna ainda mais abstrato, pois sempre poderá ser adquirido, ludibriado ou mesmo eliminado. Clones, substitutos, realidade virtual e tantas outras possibilidades passam a se sobrepor em uma velocidade cada vez maior, restando ao espectador apenas o esforço para se ater a uma linha narrativa que lhe entregue algum tipo de resolução. Descobrir quem é o culpado logo perde importância diante de questões mais urgentes, como que tipo de vigilância poderia impedir tais atos e qual retribuição seria justa para aqueles que tudo pode e tudo tem?

Se visualmente Altered Carbon é de deixar qualquer um deslumbrado, é uma pena que muitas das suas conclusões soem apressadas. E, no final, ao se aproximar perigosamente de desenlaces dignos das mais populares novelas latinas, se torna inevitável indagações a respeito do investimento – 10 horas, afinal – dispendido para atingir tal resultado. Ainda mais quando tantos caminhos são, simplesmente, descartados – quão mais interessante seria se Kovacs fizesse valer a máxima proposta por esta realidade e a cada instante assumisse uma nova capa? Seria um vertiginoso exercício de disfarces, mas como descartar um rosto – razoavelmente – famoso no papel principal? Assim, meio que aos trancos e barrancos, a história se completa com um final não à altura das expectativas levantadas lá no começo, mas ainda assim digno do conjunto apresentado. Resta, no entanto, esperar por uma segunda temporada para imaginar se, uma vez em terreno já ganho, a coragem e a ousadia passarão, enfim, a definir as novas regras do jogo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Robledo Milani
6
Mariani Batista
7
MÉDIA
6.5