Crítica


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Sinopse

Earnest "Earn" Marks sai da faculdade para virar o agente da carreira de súbito sucesso de seu primo. Porém, os dois discordam em diversos âmbitos sobre a divisão entre arte e entretenimento no hip-hop. Além disso, ele terá que lidar com a mãe de seu filho e com o colaborador do primo.

Crítica

O dia a dia é repleto de aleatoriedades. Mas aparentemente, quanto mais periféricas, mais as pessoas vão estar expostas ao improvável e às injustiças dessa arbitrariedade. O absurdo é cotidiano para as comunidades mais pobres, e se manifesta tanto na forma revoltante de um abuso policial, como na divertida excentricidade de um vizinho. Protagonizada e criada por Donald Glover, Atlanta entende que a realidade dos seus personagens, povoada de violência e miséria, implica na procura inerente por felicidade, e com isso em mente, inspira o riso de forma delicada, principalmente por construir tão bem uma atmosfera de melancolia e introspecção.

Nenhuma surpresa, Glover é um ator que se criou nos palcos de stand-up, onde o discurso auto-depreciativo pode ser uma ferramenta poderosa. Aqui ele é Earn, um pobretão que mantém uma relação estranha com a esposa por causa da filha – embora o casal durma junto e discuta problemas comuns da vida de pais, parece que existe um acordo de que vão se separar e Vanessa (Zazie Beets) já está, inclusive, marcando outros encontros. Decidido a reverter essa situação e ajudar a família com algum dinheiro, Earn procura seu primo rapper, Paper Boi (Brian Tyree Henry) e propõe agenciar sua carreira – um plano que tem vários altos e baixos. Não é fácil ser um Zé Ninguém e tentar ganhar a vida, pois ao contrário do que acreditam os meritocráticos, a sociedade nem sempre dá oportunidades às pessoas só porque elas se esforçam pra isso.

Um tom onírico é o que dita essa incerteza na jornada de Earn. Como nos sonhos, existe uma fluidez da realidade na narrativa de Atlanta; um disparo ou um sanduíche de Nutella podem transformar tudo num pesadelo. O inusitado é ferramenta seminal nessa ideia, seja em elementos secundários: pessoas andando na rua vestidas de vaca, um fã mascarado que aparece na porta de Paper Boi ou, ainda, numa das melhores sacadas da temporada, um plot envolvendo certo carro no episódio The Club (T01E08); ou de forma mais óbvia: um ricaço condescendente apaixonado pela cultura negra ou a peregrinação de Earn e Darius (o excelente Lakeith Stanfield, que sozinho é um evento surreal dentro da trama) para vender uma espada samurai – provável referência a Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), que também usava o mesmo objeto de maneira similar.

Porém, esse surrealismo (que deixaria Luís Buñuel orgulhoso), vai além e quebra a típica crueza das narrativas ambientadas no “gueto”, dando ares de fantasia a um cenário associado com a austeridade. A fotografia, por exemplo, foge da sujeira estética e almeja a plasticidade através da iluminação estudada, filtros dessaturados e enquadramentos inventivos que extraem significado de si mesmos – aquele que alterna entre Earn e um revólver deitado, por exemplo, chega a tempo de incutir a ideia de auto-aniquilação com que o protagonista acorda todos os dias. De outra forma, a própria fonte usada no logotipo da série, com seus floreados, já sugere uma sofisticação que o senso comum não casa com a narrativa sobre as periferias – e a insistência do nome “Atlanta” surgir em letras rebuscadas sobre superfícies mundanas, já força que o espectador adote uma configuração semiótica incomum, ao menos durante os vinte e tantos minutos que duram cada episódio.

É um basta na ideia de classes incultas ou de que a inteligência está ligada a um repertório pré-estabelecido. O negro da periferia associa um flerte com marxismo, e mesmo um rapper embutido de todos os preconceitos machistas e sensos comuns de seu ambiente, tem uma ideia geral sobre humanidade mais gentil e sábia do que o jornalista esnobe que o entrevista – o que acontece no excepcional capítulo que disseca o modo como a programação de certos canais de TV preferem vender os problemas sociais do que ajudar a resolvê-los. Aliás, a mensagem de que devemos lutar por mudanças em níveis mais profundos do que o das aparências é um tópico recorrente abordado por Glover, que dá a Vanessa (Beets dá um show de sensibilidade) todo um arco independente envolvendo conflitos com a classe alta – novamente, remetendo ao Buñuel de obras como O Anjo Exterminador (1962).

São narrativas separadas por décadas, mas que ainda conversam através da estratégia de evocar o humor crítico sem perder uma consciência social melancólica e até sombria. Donald Glover constrói Earn para que seja um retrato disso; introspectivo e perspicaz, o protagonista recorrentemente demonstra tanto o comportamento reservado quanto o pragmatismo digno de um indivíduo que cresceu aprendendo a enxergar oportunidades em qualquer brecha. “Eu continuo perdendo, como se houvesse pessoas que estão destinadas a perder para manter o balanço do universo”, desabafa ele, falando menos de si mesmo do que dos seus colegas de classe, pobres e negros.

Parece clichê dizer isso, mas tendo em vista que nada em Atlanta é batido, talvez seja adequado definir que seja uma série sobre Empatia. E mais, uma que, tal qual seus personagens, percorre um caminho muito mais difícil do que o comum – partindo do âmbito pessoal daquelas figuras e explorando a sua realidade de forma subjetiva. O que, por fim, explica o absurdo com que os Glover e os demais diretores permeiam a trama.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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