Crítica
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Sinopse
Depois de ser gentil com uma mulher vulnerável, um comediante passa a ser alvo de uma obsessão sufocante que pode arruinar ambos.
Crítica
Qual o lugar do homem branco em luz dos acontecimentos do século XXI? Em meio a justa busca por espaço de tantas minorias, difícil prestar atenção no que aquele, que por tanto tempo se acostumou ao controle, tem ainda a dizer. Mas o fato é que, por mais que siga à frente dessa sociedade majoritariamente patriarcal, eis uma figura capaz de surpreender. Tal qual o que se percebe com o protagonista de Bebê Rena, minissérie de apenas 7 capítulos criada e protagonizada pelo comediante Richard Gadd. Em menos de quatro horas de duração, o rapaz de pouco mais de trinta anos oferece ao espectador um conto de espanto e desilusão, desespero e profunda tristeza, indo em sentido oposto ao clima leve e descontraído que tanto sua profissão, quanto o formato assumido – geralmente, programas do gênero, com episódios em torno de 30 minutos cada, prezam pelo humor fácil e de efeito imediato – costumam buscar. Pelo contrário, o que exibe é um desnudamento de alma e intimidades, oferecendo algo que pode ser visto tanto como uma história de horror como um sinal de alerta. Ou ambos, como parece ser o mais apropriado.
Um dos problemas que enfrenta, porém, não é nem o discurso, mas aquilo que está na superfície e acaba sendo o primeiro ponto de contato com o público: o título. Afinal, quem não pensaria, num primeiro instante, que Bebê Rena se trata de uma produção infantil? Ou, por meio de uma das principais imagens de divulgação, com o protagonista em frente a uma janela embaçada na qual se forma dois chifres ao redor de sua cabeça, não seria ilógico se imaginar diante de uma trama de fantasia, tal qual um spin-off de Sweet Tooth (2021-2024), por exemplo? Pois bem, nem uma coisa, muito menos outra. O que se tem aqui é um relato pessoal sobre os traumas e transtornos enfrentados por Donny Dunn (Gadd, em performance hipnotizante), um bartender de um pub londrino que sonha em ter seu talento como profissional de stand up comedy reconhecido. Ele levava uma vida igual a tantas outras até o dia que decidiu oferecer, como cortesia, uma taça de chá a uma possível cliente em estado emocional abalado. E o que poderia ser um gesto quase desapercebido dá início ao verdadeiro inferno que sua vida se transformou nas semanas e meses seguintes.
Antes disso, ainda na cena de abertura, Donny entra em uma delegacia decidido a prestar queixa contra uma possível perseguidora, uma mulher que estaria no seu encalço dia e noite, atordoando-o sem folga ou descanso. Após o questionamento de praxe, o policial lhe pergunta há quanto tempo esta situação estaria ocorrendo. “Seis meses”, responde o rapaz. O espanto do oficial é o mesmo de qualquer um em frente à tela. “Por quê você levou tanto tempo para fazer essa denúncia?”, é o óbvio a ser indagado. Encontrar uma justificativa para isso, porém, é mais complexo. Tanto é que Gadd, roteirista da série e da peça na qual essa se baseia, estruturou com precisão o desenrolar dos acontecimentos: os três primeiros episódios servem para armar o cenário e levantar dúvidas, enquanto o trio derradeiro tem como função apontar direções e mostrar o quão difícil pode ser apontar culpados frente a um contexto tão complexo quanto o que aqui se desenvolve. E no meio disso, no quarto segmento, justamente o maior deles, é quando finalmente se entende o antes, para que o agora comece a fazer sentido e, enfim, um depois possa ser elaborado.
Neste ponto, é importante dar um passo atrás e estudar com mais afinco quem é Martha, a mulher que parece ser a culpada de tudo que aqui se torna explícito. Porém, à medida que se permite ao espectador conhecê-la melhor, maior fica o entendimento de suas fragilidades, instabilidades e confusões, por vezes mostrando-a tão vítima quanto agressora. E por mais que sua insanidade seja um fato atestado pela justiça (há casos prévios que contaram com seu envolvimento), muito está também na conta dele, em situações anteriores por ele vivenciadas e na sua própria insegurança emocional. Essas duas figuras, assim, vão além dos estereótipos ou clichês mais óbvios, revelando-se multifacetadas e dotadas de diversas camadas de entendimento. Donny poderia ser somente alguém carente que se mostra satisfeito, num primeiro momento, por ter se tornado o centro do mundo de uma outra pessoa, mesmo sendo essa uma desconhecida – uma forma de compensar a falta de aplausos em suas apresentações. Ela, por sua vez, se encaixaria com tranquilidade no papel da louca descontrolada, a stalker perigosa tão comum nos thrillers hollywoodianos. Porém, com o avanço dos acontecimentos, tais percepções se confundem. O que ele fez para estimular o comportamento dela? E ela, será que poderia ter agido de forma diferente, não fosse ter encontrado nele o contraponto adequado ao seu próprio desequilíbrio?
Mas que o curioso mais afoito não se confunda: Bebê Rena é sobre ele, Donny Dunn, e principalmente sobre seu intérprete, Richard Gadd. Após participações discretas em séries como Outlander (um episódio em 2020) e Entre Casamentos (três capítulos em 2022), ele parecia fadado ao anonimato. Ao menos até decidir fazer acontecer por si mesmo. E foi olhando para sua trajetória, e o que teria, de fato, lhe ocorrido, que conseguiu tornar concreta essa trama, que ao mesmo tempo em que se mostra um mergulho profundo nas suas cicatrizes, também se confirma como o maior desafio – e oportunidade de reconhecimento – de sua carreira. Ele é dor e compaixão, na mesma proporção que provoca inconformidade e desprezo, pela quantidade de vezes que incorre nas mesmas fraquezas. Jessica Gunning, que marca presença como Martha, sua algoz e admiradora, revela-se por meio de uma transformação assustadora, longe dos tipos discretos que deu vida em Orgulho e Esperança (2014) ou MotherFatherSon (2019). Ela é tanto acolhimento quanto temor, e a vivacidade que imprime no olhar esconde tantas dores e ressentimentos que se torna quase impossível, ao menos por breves momentos, não se compadecer de sua debilidade.
Sem respostas fáceis e caminhos confortáveis, Richard Gadd expõe-se de uma maneira rara de se ver no audiovisual mainstream – lembre-se, ainda que não seja uma produção original, está disponível na maior parte do mundo por meio de uma das maiores plataformas de streaming – assumindo suas culpas e tropeços, mas também uma esperança inegável em dar a volta por cima e se livrar do buraco que, se em parte suas indecisões o levaram até ele, muito se deve ainda por estas más intenções que, por mais de um momento, o rodearam. E se Bebê Rena é mais do que um mero jogo de gato e rato, sobre uma mulher descontrolada e sua vítima favorita, em parte é pelo gigantesco grau de humanidade que o texto impregna seus personagens. Mais do que as histórias de bastidores – essas poderiam render um programa à parte – é no que está em cena, o interesse crescente por este desalento e pela certeza de que a eles um dia melhor ainda é possível que acompanhá-los por esta jornada de (muitos) baixos e (poucos) altos se mostra não apenas justificada, mas necessária. Um respiro de alívio, mas mais do que tudo, de respeito não só por tudo que foi vivido, mas pelo aprendizado que ficou como legado.
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