Crítica


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Sinopse

Atraída pelos estudos da biotecnologia ao entrar na faculdade de medicina, Mia Akerlund rapidamente ganha a confiança da renomada professora Tanja Lorenz. Porém, essa relação vai ser estremecida assim que uma perigosa pesquisa cair em mãos erradas, comprometendo o futuro da humanidade.

Crítica

Talvez uma das convenções mais desgastadas do cinema blockbuster, reutilizada sem moderação nas séries de televisão, consista na figura do "escolhido". Trata-se da pessoa que, diante de uma catástrofe global, carrega sozinha a poder de salvar o mundo, por possuir qualidades que ela mesma desconhecia. Nos cenários pós-apocalípticos, esta seria a única pessoa capaz de fabricar um antídoto ao vírus mortal. No caso das distopias adolescentes, seria a única adolescente que fere as regras sociais (Divergente) e que ousa romper a lógica dos mundos (Crepúsculo). A princípio, estas figuras ordinárias poderiam corresponder a qualquer espectador jovem, convocado pela trama a se descobrir herói e enfrentar uma aventura sem precedentes. Ao deflagrar abusos médicos gravíssimos, o roteiro de Biohackers não concebe uma personagem motivada por princípios morais. Quando descobre atividades proibidas nos bastidores de sua prestigiosa faculdade, Mia Ackerland (Luna Wedler) se incomoda por constituir uma vítima direta destas práticas. Não há mais heróis movidos por ideologia, apenas traumas pessoais. Quantos vilões não foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela morte dos pais dos heróis?

Logo, a jovem estudante de medicina precisa bolar um plano contra a supervilã, facilmente identificada enquanto tal pelas roupas que veste, pela maneira de falar, e por utilizar frases como “Deus será obsoleto!” em aula. Convém avisar que o projeto foi elaborado para pessoas sem conhecimentos científicos específicos, porém passíveis de se impressionar com termos complexos e equipamentos estranhos. Mia é uma estudante de medicina que nunca faz uma aula sequer em seu curso. Aparentemente, a única turma disponível na universidade é ministrada por Lorenz (Jessica Schwartz), a Jeanine/Ava/Effie da trama. Jamais se ensina o que quer que seja: os professores exigem que os alunos conheçam os livros inteiros desde a primeira aula. Desenha-se uma curiosa noção de ensino, composta de alunos gênios diante de professores-messias, transformados em astros midiatizados. A relação professor-aluno torna-se ainda mais vertical e psicologicamente abusiva. Em paralelo, experimentos biológicos complexos acontecem em questão de minutos, genomas são mapeados em segundos, plantas fluorescentes aparecem em qualquer festa local. A série sofre da síndrome de C.S.I., no sentido de acelerar processos árduos ao limite do humor involuntário para aumentar a tensão e o aspecto espetacular da manipulação genética. O criador Christian Ditter se interessa pela ciência apenas no ponto superficial em que pode ser associada à magia, ou seja, quando é desvestida do raciocínio lógico que a sustenta.

O realismo é sacrificado em nome do ritmo acelerado e funcional. A cena de abertura provoca as expectativas do público ao construir uma sequência de forte tensão, bem dirigida e montada, ocultando elementos-chave que poderiam guiar nossa leitura. O colapso dentro do trem serve ao mesmo tempo para sugerir uma ação frenética, nos lançar no mundo da biologia avançada e sugerir que Mia possui alguma ligação especial com o desastre. O episódio inicial, com direito a um excelente gancho nos minutos finais, promete algo próximo da ficção científica e do universo da espionagem. No entanto, os demais episódios tratam de atenuar este tom, inserindo coadjuvantes engraçados (Ole, interpretado por Sebastian Jacob Doppelbauer, e Chen-Lu, interpretada por Jing Xiang), típicas cenas de festas e brincadeiras em repúblicas estudantis, e garantindo rapidamente o triângulo amoroso em torno da jovem alemã. Quem Mia preferiria neste percurso, Niklas (Thomas Prenn) ou Jasper (Adrian Julius Tillmann)? Como em Divergente, Jogos Vorazes e Crepúsculo, os concorrentes brigarão por ela. Em menos de uma semana de ingresso na universidade, amores, desafetos e segredos de Estado serão descobertos.

A produção da Netflix Alemanha segue à risca alguns preceitos pouco inventivos, porém funcionais dentro do estilo proposto. Os espaços são reduzidos a três locações principais, dentro das quais ocorrem ações impensáveis – sobretudo na casa de Lorenz. Mesmo assim, eles impressionam pelo “valor de produção”, ou seja, pela beleza dos cenários, a amplitude das casas, a riqueza de detalhes dos laboratórios. A construção estética se posiciona alguns graus acima do realismo: o laboratório é asséptico demais, a república tem as paredes corroídas demais, as salas de aula são frias e monumentais, o casarão de Lorenz soa desproporcional. Ditter opta por um convite à fantasia: adentrar cada um destes espaços equivale a aceitar a possibilidade de um mundo mágico, repleto de recompensas e perigos. Mesmo um inocente laboratório caseiro, escondido na floresta, revelará seus segredos rumo ao final. De resto, o projeto busca atalhos (ou catalisadores) para acelerar e multiplicar os conflitos. Isso significa que provas comprometedoras se encontram à vista dentro de lixeiras, amostras de DNA estão acessíveis por meio de um simples cartão magnético; pessoas com segredos digitam as senhas de seus computadores diante dos inimigos; documentos escondidos dentro de caixas de som são descobertos em segundos; hospitais são invadidos e drogas experimentais são ministradas facilmente em três oportunidades.

Nada disso se sustentaria dentro de uma série com maior preocupação em relação ao real. No entanto, o criador prefere multiplicar as possibilidades de colocar sua heroína em risco. Ele fornece uma narrativa tão envolvente quanto codificada, e clemente demais com a lógica interna. Luna Wedler demonstra talento no papel central, ainda que seja condicionada à aparência da garota forte, bela, destemida, e movida por um senso de justiça (confundido com vingança) inabalável. Jessica Schwarz cumpre com eficiência a imagem do cientista maluco de saias, transparecendo a ideia de que, para o homem contemporâneo, não há nada mais assustador do que uma mulher em posição de liderança, solteira e usando roupas sociais. A questão biológica estampada no título fica em segundo plano. Na Alemanha contemporânea, ainda traumatizada pelo passado nazista e pelo ressurgimento de grupos de extrema-direita, não se poderia discutir com tamanha leveza as teorias eugenistas. No entanto, a trama se apoia numa representação agressiva das práticas de “limpeza” social, sem jamais propor uma reflexão ética. A decisão de se esquivar das nuances, convertendo Lorenz numa vilã sem coração, serve para fugir das complexas questões de bioética citadas na trama, a exemplo da utilização de células tronco e o controle de doenças antes do nascimento.

Por fim, Ditter tenta seduzir o espectador menos pelo interesse na ciência do que pelo temor diante do desconhecido. Os criadores apostam tanto na segunda temporada que sequer concluem a narrativa inicial, suspendendo a história durante um intenso ponto de virada que, além de não elucidar todos os mistérios, ainda cria novos dilemas para a sequência. Propensa às teorias conspiratórias e fornecendo munição ao anticientificismo contemporâneo, Biohackers pode ser questionado pela imprecisão com que aborda um trabalho laborioso e exaustivamente comprovado. Mesmo assim, o projeto abre as portas para Mia resolver seus traumas de infância, assumir sua verdadeira identidade, acertar as contas com os algozes e escolher um dos pretendentes para estabelecer um romance. A narrativa se interrompe quando pessoas estão morrendo, as inovações tecnológicas estão fora de controle, mas a vida de Mia, ainda que em perigo, se encaminha a alguma forma de resolução. Ao final, as tramas sobre personagens “escolhidos”, em tornos dos quais gira o mundo (não há um único personagem com falas não-conectado a Mia) se assemelham a delírios terapêuticos, fábulas nas quais a personagem traumatizada estabelece um acerto de contas simbólico com seu passado familiar através da tarefa árdua fictícia de salvar o mundo. Uma vez que a humanidade não corre perigo, a adolescente conclui seu processo de luto.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Sarah Lyra
6
MÉDIA
5.5

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