Crítica
E se? Essa pergunta, pequena, mas cheia de potencial, é a fagulha de todo e qualquer episódio da série Black Mirror. Desde sua primeira temporada, o criador do show Charlie Brooker e seu time de roteiristas tem nos feito pensar a respeito da nossa vida e da nossa sociedade sob um prisma futurista, mas preocupantemente próximo da realidade atual. Afinal de contas, as melhores ficções científicas têm essa qualidade – nos fazer enxergar o presente através de fantásticas alegorias. No caso do episódio The Entire History of You, a pergunta do roteirista Jesse Armstrong é esta: e se tivéssemos a habilidade de guardar todas as nossas memórias e conseguir reproduzi-las ao nosso bel prazer? O que aconteceria? No caso do ciumento protagonista desta história, nada de bom.
Com direção de Brian Welsh, The Entire History of You parte da premissa de que os humanos, em um futuro próximo, possuem um gadget implantado atrás de suas orelhas que permite gravar tudo o que se vê e ouve no dia a dia. Com o advento de um pequeno controle remoto manuseado por seus usuários, é possível rever momentos de sua vida – tanto para si, apenas para seus olhos, como para qualquer pessoa, o transmitindo para uma tela. Nessa realidade, Liam (Toby Kebbell) acabou de voltar de uma entrevista de emprego e não está bem certo do quanto foi bem-sucedido. Chegando a um jantar com amigos de sua esposa Ffion (Jodie Whitaker), Liam logo percebe que ela está dando muita atenção para um dos convidados, o expansivo Jonas (Tom Cullen). Durante o jantar, algo que o rapaz fala toca num nervo de Liam – algo pessoal e sexual, a respeito de rever as antigas transas que teve com seus casos passados. Desconfiado que Ffion poderia estar no rol de conquistas de Jonas, ele parte para uma incessante e paranoica investigação, chegando a respostas que não estava preparado para saber.
Como em qualquer episódio de Black Mirror, o quanto menos se sabe a respeito das reviravoltas da trama, melhor. Portanto, se você não assistiu a esse capítulo, recomendamos que pule para o próximo parágrafo. No caso específico de The Entire History of You, os climas de suspense e, principalmente, de sufocamento com o ciúme e a dúvida do protagonista são mais bem aproveitados desconhecendo o desenrolar da história. Aqui cabe dizer, no entanto, que a ideia de paranoia seria melhor utilizada caso a trama fosse por caminhos diversos do que Jesse Armstrong concebeu. Não era paranoia. Afinal de contas, o desfecho deixa claro que, embora tenha ido por uma trajetória violenta e mentalmente perturbada, o protagonista encontrou a verdade que tanto buscava. A trama premia a forma irascível de seu inquérito, ao mesmo tempo em que o deixa – como de praxe na série – pior do que como estava no início.
Pensando na tecnologia mostrada na tela e em como nossa sociedade atual é movida por estar certa sempre, imagina-se que as gravações seriam um “tira-teima” insuportável, algo mostrado através do relacionamento de Liam e Ffion. Imagine ter algo jogado em sua cara a cada momento, através de uma gravação? Não parece muito saudável, algo que The Entire History of You deixa bastante claro em seus 50 minutos de duração. Ou como mostra a perturbadora cena de sexo entre o casal, o cúmulo de não viver o momento. Apesar de estar mais interessado no relacionamento dos protagonistas, o episódio mostra alguns outros usos para a tecnologia, como a vigilância em aeroportos – uma forma de capturar terroristas, talvez?
Fechando em alto estilo a primeira temporada da série, The Entire History of You conta com um elenco afiado – Toby Kebbell e Jodie Whitaker são óbvios destaques – e uma trama inventiva que utiliza bem sua premissa para nos fazer pensar. Mesmo que a reviravolta final soe exagerada, ainda assim não parece deslocada do que a trama vinha nos mostrando até então. Uma visão perturbadora e pessimista de um relacionamento em um futuro nada longínquo é o que este episódio propõe e entrega
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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