Crítica
Quando saíram as primeiras imagens dos episódios da quarta temporada de Black Mirror, saltou aos olhos a potencial sátira ou homenagem que a série de Charlie Brooker faria à Star Trek em U.S.S. Callister. O uniforme, a postura dos atores e o cenário não deixavam dúvidas de que estávamos frente à uma citação direta ao famoso show criado por Gene Roddenberry. Mas como isso se daria dentro do universo de Black Mirror? A resposta chegou em 29 de dezembro, com a estreia dos seis episódios que dariam conta da quarta temporada desta produção original Netflix. E, como de praxe para a série, o resultado impressiona. Não tanto pelos plot twists, marca registrada do programa, mas pela forma como Brooker e sua equipe retrabalharam conceitos de Star Trek de forma nova e, para os padrões de Black Mirror, com um insuspeito senso de humor – doentio, na maioria das vezes.
Na trama, assinada por Brooker e William Bridges, entramos na história no meio de uma aventura interplanetária da espaçonave U.S.S. Callister – com todo o jeitão da Enterprise de Star Trek. O corajoso capitão Robert Daly (Jesse Plemons) comanda sua equipe em uma aparente missão suicida, perante a atônita tripulação – e o estilo da filmagem, assim como os efeitos visuais, bebe na fonte da criação de Roddenberry. Logo percebemos, no entanto, que o que vemos não é a realidade. Daly estava dentro de um jogo chamado Infinitiy, criado por ele, embora não receba muito crédito por isso. Seu amigo e sócio James Walton (Jimmi Simpson) o trata como um capacho e ninguém da equipe de sua empresa o respeita como chefe. Quando a nova funcionária Nanette Cole (Cristin Milioti) é contratada, ela só tem olhos para Daly, quem considera um supergênio. Mal ela sabe que debaixo daquela atitude digna de pena vive um sujeito doentio e autoritário, que desconta todas suas frustrações dentro do jogo. O problema maior é que os personagens com quem ele interage dentro de Infinitiy são clones virtuais das pessoas com quem ele convive na empresa. Um verdadeiro Deus dentro da plataforma, Daly é tirania em pessoa e a inclusão de Nanette dentro do jogo tem potencial para mudar o status quo daquela realidade virtual, mas muito real para os clones dentro do game.
Criatividade parece não faltar para Brooker e companhia. Aqui, vale pular o parágrafo caso você não tenha visto U.S.S. Callister e San Junipero, dois episódios que apresentam similaridades. Mesmo que o conceito de uma realidade virtual onde se possa viver seus sonhos já tenha sido trabalhada em San Junipero, o elogiadíssimo episódio da terceira temporada, Black Mirror consegue dar um novo twist nessa ideia. Afinal de contas, são inúmeras as possibilidades em um universo virtual. Se na temporada anterior tivemos um passeio idílico no pós-vida com as protagonistas, em U.S.S. Callister temos a chance de observar os malefícios do poder em um sistema sem possibilidades de fuga. Ou melhor, com poucas possibilidades, como acompanhamos no episódio – eis outra similaridade entre os dois episódios, sabendo quão raríssimos finais felizes são dentro do universo de Black Mirror.
Jesse Plimons, Jimmi Simpson e Cristin Milioti são destaques no quesito atuações, cada qual com suas particularidades. Os dois primeiros vivem personagens distintos dentro e fora da máquina. Existe uma inversão de atitudes que é muito bem encarnada pelos dois. Já Milioti é nossa heroína, uma mulher determinada a não ser vítima de um sujeito egocêntrico e tirano, que utiliza inteligência e perspicácia para tentar vencer seu adversário. É verdade que o episódio se estende um pouco mais do que deveria, mas ao menos o trio principal – junto do bom elenco coadjuvante, contando com Michaela Coel, Milanda Brooks, Osy Ikhile, Paul Raymond e Billy Magnussen – seguram bem a atenção do espectador. O diretor Toby Haynes parece se divertir ao emular o estilo de atuação do elenco de Star Trek, mas não se prende apenas a essa piada para divertir. Alguns trechos – como as missões da equipe fora da nave – tem humor que nem sempre vemos em Black Mirror, o que soa uma ótima notícia para quem não gosta de ver séries se repetindo infinitamente.
Com conceito interessante e um arco que dá pano para manga para paralelos com nossa realidade – o fato de termos um homem em posição de poder assediando suas funcionárias não é coincidência – U.S.S. Callister é um primeiro episódio poderoso da quarta temporada de Black Mirror. Já se fala em um potencial spin off, o que poderia ser bastante interessante de acompanhar, ainda mais com o time que foi reunido para dar vida àquela tripulação.
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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