Crítica


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Sinopse

A luta das famílias das vítimas de uma das principais tragédias recentes do Brasil, o incêndio na Boate Kiss.

Crítica

Em 27 de janeiro de 2013 uma tragédia marcou para sempre a história de Santa Maria, cidade situada na região central do estado do Rio Grande do Sul. Um incêndio na então badalada boate Kiss ocasionou a morte de 242 jovens, em sua maioria estudantes universitários. Portanto, a minissérie documental Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria chega 10 anos após o acontecido, tempo suficiente para as feridas minimamente começarem a cicatrizar, mas não quando a justiça é constantemente obstruída por subterfúgios que acabam prorrogando a dor dos pais e sobreviventes enquanto flertam perigosamente com a impunidade e o esquecimento. Quase simultaneamente foi lançada uma versão ficcional dessa luta aguerrida dos remanescentes, intitulada Todo Dia a Mesma Noite (2023) – cuja crítica você pode ler clicando aqui. São projetos distintos, com abordagens e intenções bem específicas. Essa minissérie documental está mais alinhada aos ideais e formas jornalísticos. Na prática, é uma grande reportagem estendida que se beneficia dos recursos audiovisuais para melhor construir o seu ponto de vista. Desse modo, ela não tem grande ambições no quesito linguagem, pois prioriza a costura de relatos, depoimentos e materiais de arquivo a fim de registrar a década que sucedeu o fato revoltante. Tanto que o primeiro episódio se propõe a contar exatamente como essa fatalidade aconteceu.

A direção geral de Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria é do jornalista Marcelo Canellas, um dos profissionais da imprensa que mais acompanhou os desdobramentos do caso da boate Kiss durante esses 10 anos. Marcelo nasceu em Santa Maria, frequentou a mesma universidade (a UFSM) em que as vítimas cursavam as suas respectivas graduações e chegou a estudar no ensino fundamental com um dos empresários acusados de homicídio doloso levados a júri popular. Talvez se estivéssemos diante de um projeto menos focado essencialmente na informação, a perspectiva singular de Canella seria melhor explorada, com esse narrador se transformando em personagem e refutando certo distanciamento jornalístico. Por mais que o vejamos sendo recebido como velho conhecido pelos parentes das vítimas, essa posição privilegiada nunca entra como elemento efetivo do discurso da série. Não há ponderações sobre o quanto a familiaridade afeta ou determina o seu trabalho enquanto investigador. Está aí a maior lástima. Adicionar complexidade a essa relação do narrador com os fatos poderia conferir um valor audiovisual a um produto que se mostra competente como reportagem, mas conformado um pouco demais com protocolos jornalísticos que engessam a imaginação em prol da informação. A objetividade do ofício ou, melhor dizendo, a impossibilidade dela, poderia estar ali debatida.

Feita a ressalva quanto à ausência de imaginação, Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria é um bem-sucedido estudo de caso pelo viés jornalístico, especialmente no que diz respeito à visibilidade da luta dos familiares e sobreviventes por justiça. Marcelo Canellas reconstitui aquele dia fatídico utilizando as imagens captadas pelas vítimas, os depoimentos de pessoas que estiveram na boate Kiss na ocasião, também lançando mão de testemunhos de socorristas e demais profissionais atuantes em meio ao caos que levou à tragédia. A minissérie se detém com especial atenção à maneira como os pais elaboraram seus lutos, transformando a dor lancinante da perda de filhos tão jovens em força mobilizadora. Enquanto ainda estamos nos acostumando com a abordagem, é particularmente difícil acompanhar sem olhos marejados a sucessão de falas de mães e pais enlutados que caem nas lágrimas ao evocar a memória dos mortos. Diga-se que Canellas e sua equipe são bastante respeitosos nesses instantes, encarando a emoção dos remanescentes, mas sem cair numa espetacularização que seria, além de contraproducente, uma tremenda falta de sensibilidade e ética. Aliás, há episódios em que esse comprometimento ético sobressai, como quando a promotoria exibe o vídeo dos cadáveres empilhados. A câmera faz questão de não nos mostrar essa prova, focando-se somente na comoção dos presentes.

Santa Maria é uma cidade universitária com cerca de 300 mil habitantes, cuja vida cotidiana gira muito em torno da movimentação estudantil. Tantos são os jovens vindos de outras localidades que se mudam temporariamente para lá a fim de alcançar a formação. No entanto, isso não é muito enfatizado em Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria, basicamente sendo citado como contexto. O foco da minissérie que conta com cinco capítulos é acompanhar como tudo se deu nesses 10 anos posteriores a uma fatalidade que contempla vários fatores. É particularmente inteligente o episódio em que são comparados os casos da Kiss e da boate Cromagnon, na Argentina. E as semelhanças são impressionantes. Em ambas os fogos de artifícios são acesos irregularmente dentro de um local fechado, a espuma colocada no teto para isolamento acústico entra rapidamente em combustão, a fumaça tóxica se espalha rapidamente, os jovens entram em desespero e dezenas de vidas são perdidas. É interessante como na equivalência o trabalho jornalístico de Marcelo Canellas deixa escancarado que um conjunto de fatores recorrentes independe da especificidade de cada ocasião: conduta irresponsável, falta de condições locais para lidar com um cenário excepcional, empresários gananciosos que desrespeitam protocolos de segurança, pais destroçados batalhando para a memória renovada evitar outras calamidades.

Também é uma pena que Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria não se foque, ao menos um pouquinho mais profundamente, nas diferenças entre a Kiss e a Cromagnon, sobretudo a predisposição argentina à manifestação pública contrária às injustiças enquanto persevera no Brasil um senso de impunidade – como se o esquecimento fosse a melhor forma de lidar com a dor. Tudo isso é citado de passagem, mas poderia ganhar densidade se trazido ativamente ao diagnóstico da coletividade. Mas, como dito no princípio desse texto, a minissérie é claramente jornalística e por seus dispositivos informativos deve ser avaliada, claro, não se furtando o crítico das conjecturas do tipo “o que poderia ser se”. Como uma reportagem em cinco partes, ela é bem-sucedida, principalmente por conta da habilidade na costura dos fragmentos e pela eleição de um grupo específico de pais e sobreviventes que mantém no nosso horizonte a dimensão humana da tragédia. Claro, em certa medida estamos diante de um caso que envolve negligências, tecnicismos judiciais que podem (e devem) ser veementemente questionados e a indisposição de um povo para lidar com o próprio passado. Mas, a prioridade é apresentar os efeitos devastadores da tragédia da boate Kiss no tecido vivo de uma comunidade que, por ser interiorana, é ainda mais marcada pela dor do que aconteceu. E isso é um mérito, sem dúvida.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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