Crítica
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Crítica
Um mundo em que criaturas fantásticas, como faunos, fadas e centauros, convivem lado a lado com os seres humanos. Essa realidade pode remeter o fã de fantasias épicas aos cenários descritos por J.R.R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, mas quem for assistir a Carnival Row com essa ideia em mente certamente irá se decepcionar. Afinal, o universo aqui descrito está mais próximo daquele visto recentemente em Game of Thrones (2011-2019) – mas, para os conhecedores da saga criada por George R.R. Martin, será melhor se concentrar nas intrigas palacianas de King’s Landing e menos nas possibilidades para além da Grande Muralha. Afinal, o fantástico na série concebida por Travis Beachman serve mais como uma alegoria para os tempos atuais, talvez sem a mesma objetividade de uma minissérie como Years and Years (2019), mas com igual fúria e determinação em seu discurso. É por isso, mais do que qualquer trama detetivesca que busque emular ao longo dos seus oito capítulos dessa primeira temporada, que ela mostra – e justifica – sua verdadeira pertinência.
Logo nos primeiros segundos de Carnival Row o espectador é confrontado com uma guerra em pelo curso – ou, melhor dizendo, com um campo de extermínio. As fae – fadas – estão sendo dizimadas em sua própria terra natal. Resta apenas o Burgo, que anos atrás invadiu o território estrangeiro em busca de maiores riquezas e poderio bélico, e agora, ao invés de oferecer aos sobreviventes uma nova chance de recomeço, esforça-se para eliminá-los por completo. Devido ao conflito anterior, estes seres mágicos não vivem mais separados da humanidade, e, portanto, são obrigados a dividirem os mesmos ambientes, porém como párias indesejadas. Carnival Row é um destes bairros que abriga aqueles vistos com mal olhos pelo resto da sociedade. São subúrbios, zonas de meretrício, onde a pobreza e a violência abundam sem muitos critérios. Justamente por isso, demora a chamar atenção das autoridades quando vários destes recém-chegados começam a aparecer mortos, em condições absurdamente trágicas. Se o assassino está eliminando os indesejados, pouco importa àqueles que se regozijam com o resultado destes feitos. Mas um homem irá fazer diferença: o inspetor Rycroft Philostrate, ou apenas, Philo (Orlando Bloom, em presença acertada e até mesmo contida).
Philo tem motivos particulares para se envolver com esse caso, e este é um dos bons segredos desta primeira temporada. Figura-chave da trama, é nele também em que estão centradas as atenções de Vignette Stonemoss (Cara Delevingne, eficiente ao dosar seu lado selvagem com um que anseia por encontrar algum tipo de paz), uma fada que guarda tanto rancor quanto paixão pelo protagonista. Para melhor entender a relação dos dois, é fundamental chegar até o episódio 03, Kingdoms of the Moon. Após os dois capítulos iniciais, que se ocupam basicamente em estabelecer as diretrizes do roteiro, a estrutura narrativa dá um passo para trás, em um gigantesco flashback de uma hora que se encarregará não apenas de relatar como foi o primeiro encontro dos dois, o que aconteceu entre eles e o que os levou a se separarem, mas também oferecer mais ricos e preciosos detalhes não apenas do lado humano da questão, mas, principalmente, quem são essas figuras tão poderosas, quais as histórias que carregam e como foi possível chegarem até o ponto onde agora se encontram, submissas e quase esquecidas, apagadas, vistas apenas com desprezo, como um incômodo a ser eliminado. O trabalho de pesquisa e detalhamento para a criação desse universo é impressionante, e registra aqui um dos pontos altos da produção, elevando-a acima da média do gênero.
Mas Carnival Row não se ocupa apenas do romance entre Philo e Vignette ou do caso sherlockiano a respeito do matador misterioso. O roteiro se esforça para manter equilíbrio entre estes vértices aqui apontados, mas também para incluir outros elementos que se demonstram fundamentais para o lado crítico do enredo. Primeiro, há o problema dos irmãos Imogen (Tamzin Merchant, de Supergirl, 2017) e Ezra Spurnrose (Andrew Gower, de Outlander, 2016-2017), membros de uma classe nobre decadente, que se veem obrigados a estabelecer ligações com um novo vizinho, Agreus (David Gyasi, de Malévola: Dona do Mal, 2019), um abonado fauno – e, com isso, a oportunidade de discutir racismo e preconceito ganha novos e interessantes contornos. Depois, é importante não menosprezar os embates políticos liderados pelo progressista primeiro-ministro Absalom (Jared Harris, de Chernobyl, 2019), envolto por controvérsias em casa e debates com conservadores em público, pois suas atitudes servem tanto como espelho para muito do que se tem discutido hoje em dia nos noticiários, como também guia para futuras – e assustadoras – possibilidades.
Nem só de acertos, no entanto, se desenrolam os acontecimentos de Carnival Row. Há personagens que prometiam bastante, mas não chegam a dizer a que vieram – como o titereiro vivido por Simon McBurney (The Loudest Voice, 2019) – e outros elementos que somente numa segunda temporada deverão ganhar mais espaço, como a ordem de ladrões-fadas ou a seita de faunos revolucionários. Como se percebe, há muito em ebulição, e oito episódios são suficientes apenas para desenhar um rascunho daquilo que ainda há de ser explorado pelos realizadores. As mãos competentes de profissionais como Thor Freudenthal (Percy Jackson e o Mar de Monstros, 2013), Jon Amiel (Armadilha, 1999), Anna Foerster (Anjos da Noite: Guerras de Sangue, 2016) e Andy Goddard (Downton Abbey, 2011-2012) encontraram condições adequadas para afinar suas expertises e entregar o melhor de suas capacidades individuais. Orlando Bloom e Cara Delenvigne funcionam como casal, e se as sequências que dividem a cena elevam as tensões, ambos se mostram também atraentes quando sozinhos, indicando que as expectativas para uma nova temporada são positivas. Sem esquecer de mencionar, por fim, que se trata de uma proposta original, comprovando que há espaço para novidades, sem ter que recorrer às velhas fontes já um tanto desgastadas.
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