Crítica


7

Leitores


3 votos 8

Sinopse

Bean é uma princesa alcoólatra que vive no reino mágico da Terra dos Sonhos ao lado de Luci, seu demônio pessoal, e de Elfo, seu melhor amigo. Além dos problemas com a bebida, essa jovem da realeza está disposta, juntamente com sua turminha, a viver as mais inusitadas aventuras, nem que para isso tenha que encarar terríveis ogros ou tolos humanos.

Crítica

Criada por Matt Groening – o sujeito por trás de Os Simpsons – e Josh Weinstein, Des(Encanto) se passa na Era Medieval, na fictícia Terra dos Sonhos, e adjacências. A protagonista é Bean, princesa nada ortodoxa que, a despeito da posição social ocupada, pode ser frequentemente vista embriagada pelas vielas do reino, dando desgosto ao seu pai. Portanto, a essência da personagem é a rebeldia, a forma como refuta terminantemente a autoridade para levar uma vida deliberadamente desregrada e hedonista. Em sua jornada de transgressões, ela tem a companhia de dois amigos próximos. Um deles, o Elfo autoexilado da sua terra natal, lugar feito de doces e musiquinhas felizes. Ele deseja experimentar um pouco da maldade do mundo exterior, se magoar e sofrer, para variar. O outro, o demônio Luci, a ardilosa entidade plantada no cotidiano real para induzir Bean a fazer coisas erradas, como se ela própria não tivesse uma inclinação natural a isso. A trinca domina totalmente as circunstâncias da primeira temporada.

Des(Encanto) exibe a acidez contumaz dos trabalhos de Groening. Quem está familiarizado com Os Simpsons e Futurama reconhecerá facilmente o estilo mordaz, as situações inusitadas e a ironia fina. Sinal disso, as diversas brincadeiras com criaturas mitológicas, como as sereias que na verdade são leões marinhos; os gigantes, pessoas sensíveis de altíssima capacidade intelectual; e toda sorte de subversões que acompanham o desenvolvimento da trama. O principal, porém, são as tiradas baseadas nos elementos tipicamente medievais, como a patrulha da peste, os povos vizinhos que vivem em pé de guerra e até as tentativas de alcançar a imortalidade que remontam à lenda da pedra filosofal e aos alquimistas. Todavia, ainda que a série seja bastante esperta, fragilidades não permitem que ela atinja um patamar excepcional. O potencial corrosivo é recorrentemente preterido em função de situações corriqueiras, não as caracterizando de todo, diminuindo na medida em que condutas banais surgem em cena.

As carismáticas figuras de Des(Encanto) carecem ligeiramente de consistência. Há uma ótima construção inicial de suas personalidades, mas o desenvolvimento peca ao não sustentar integralmente essas características básicas, doa a quem doer. Por exemplo, Luci é literalmente um demônio, marcante por sua capacidade maléfica, não sendo guiado por qualquer moral. Mas, ao passo que sua ligação com Bean e Elfo se intensifica, tal premissa de seu comportamento enfraquece, de certa maneira o descaracterizando em determinados instantes. Isso acontece em maior ou menor grau com os demais. A fixação do Elfo por Bean, sua vontade de beija-la e confessar amor, é utilizada circunstancialmente, não como algo intermitente e definidor. Essa frouxidão é compensada pelas sacadas engenhosas do roteiro, as gags que dão conta de tornar os episódios muito divertidos. Nem a história de João e Maria passa incólume, se tornando motivo de chacota em meio à tentativa de mostrar a boa serventia da inutilidade da princesa.

A dublagem brasileira de Des(Encanto) merece um destaque especial, principalmente pela utilização espirituosa e inteligente de frases oriundas de memes famosos, assim como de outros programas amplamente disseminados. A cargo do MG Estúdios, com direção de Felipe Drummond, o trabalho traz uma tinta especial à série, pois torna a narrativa ainda mais familiar. Frases como “morre, demônio”, “se eu pudesse, matava mil”, “não se misture com essa gentalha”, “ora, ora, temos um Xeroque Holmes por aqui”, “as árveres somos nozes”, além de expressões como “sarrada” se encaixam organicamente no enredo, não parecendo enxertadas artificialmente. Créditos, também, para o trabalho excepcional dos dubladores Luisa Palomanes (Bean), Gustavo Nader (Elfo), Francisco Junior (Luci) e Guilherme Lopes (Rei). A adaptação, portanto, se configura num dado criativo, pois adiciona uma nova camada ao material original, sem deturpa-lo para cumprir a tarefa de deixar o resultado abrasileirado.

Com bem mais altos que baixos, Des(Encanto) guarda surpresas a seus dois episódios derradeiros, com um plot twist considerável. A virada permite novos rumos, porque envolve o retorno dos que não foram – o trocadilho é por conta da casa – e a morte (definitiva?) de um companheiro importante. Porém, dentro desse universo repleto de magia, criaturas fantásticas, humanos imbecis e toda sorte de particularidades, tudo pode acontecer. Terminando abruptamente, a primeira temporada deixa um gancho e tanto para uma possível segunda. Material é o que não falta. Tirando sarro de convenções normalmente associadas ao medieval, como a hombridade dos cavaleiros que empreendem verdadeiras cruzadas para satisfazer desejos superficiais de um monarca absolutamente egoísta, a série consegue entreter com perspicácia, infelizmente sendo emperrada ocasionalmente pela ausência de uma dramaturgia mais densa, porém agradando pela anarquia que impera em torno de uma menina/mulher forte e independente, como felizmente convém à atualidade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.