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Sinopse
Em Disclaimer, Catherine Ravenscroft (Cate Blanchett) é uma jornalista de TV cujo trabalho se baseia em revelar as transgressões de instituições respeitadas há muito tempo. No entanto, o passado pode abalar sua reputação. Dirigida por Alfonso Cuarón.
Crítica
Numa atualidade como a nossa, em que a verdade está virando um conceito cada vez mais frágil, é compreensível o audiovisual apresentar ultimamente sucessivas tramas nas quais os vereditos são quase impossíveis. Baseada no livro Difamação, de Renee Knight, Disclaimer tem como protagonista Catherine Ravenscroft (Cate Blanchett), profissional bem-sucedida, casada, mãe de um jovem adulto, em suma, dona de uma vida aparentemente organizada. No entanto, as coisas mudam quando chega a ela um livro recheado de episódios há muito soterrados de seu passado, informações que podem comprometer a calmaria desse cotidiano. A premissa sugere um thriller em que a personagem principal é arremessada num jogo de gato e rato. Afinal de contas, quem escreveu o livro? O que motiva a distribuição do exemplar entre as pessoas que ela ama? Mas, a trama cujo roteiro foi escrito Alfonso Cuarón (também diretor da minissérie) não demora a revelar que Stephen Brigstocke (Kevin Kline) é o antagonista, o senhor que perdeu precocemente o filho há 20 anos e que se apropria do livro escrito pela falecida esposa para começar a colocar em prática uma vingança. Na essência, o que temos é um suspense sobre alguém sendo destruída por “verdades” antes enterradas. No entanto, na medida em que a história passa, percebemos que o princípio ativo da minissérie é justamente a fragilidade da ideia de verdade.
Catherine teria se relacionado extraconjugalmente com um rapaz que, assim como ela, passava férias na Itália. Tudo o que sabemos nos primeiros seis dos sete episódios de Disclaimer é fruto do conteúdo do livro escrito pela mãe enlutada do garoto. Portanto, ela não estava lá para saber exatamente como (e se) aconteceu a aproximação amorosa entre ele e a protagonista, como (e se) ocorreram as tórridas relações sexuais, de que maneira (e se) Catherine fez vista grossa para o garoto se afogando depois de ter salvado o seu filho de um oceano bravio. No entanto, Alfonso Cuarón é inteligente o suficiente para nos desviar da verdade, nos equiparando a boa parte dos personagens que tomam o relato do livro como uma surpreendente verdade impressa, como um discurso fantasmagórico que se desprende milagrosamente do passado conhecido somente por Catherine e pelo falecido. A protagonista fica abalada ao ler sobre o acontecido há décadas, tem medo de que sua vida seja arruinada por aquilo tudo, enquanto Stephen age como paladino justificado por uma suposta verdade em busca de sua vingança. No meio disso, há o marido de vaidade ferida interpretado por Sacha Baron Cohen e o filho perdido vivido por Kodi Smit-McPhee. A narrativa contida no livro desenha Catherine como uma mulher lasciva que seduziu o rapaz e se aproveitou da ocasião para ter noites de prazer enquanto o marido estava longe.
Deixando de lado o que acontece enquanto Catherine reivindica desesperadamente ser ouvida, Disclaimer é muito astuta ao discutir tão inteligentemente a natureza da representação. Se o que sabemos do passado de Catherine tem a ver menos com a visão dela e mais com os escritos de uma mulher desconhecida a partir de detalhes praticamente impossíveis, precisamos pensar muito nesse ponto de vista. Nancy (Lesley Manville) criou o livro em segredo, isso enquanto sofria simultaneamente a morte do filho e lidava com o avanço de um câncer terminal. Com base em fotografias comprometedoras e nas pegadas do falecido, ela construiu uma trama na qual Catherine é demonizada por expressar desejo. Tanto que a protagonista é sempre vista nesse passado (interpretada por Leila George) com atitude sexualmente impositiva. O que, claramente aos olhos da autora e dos homens que se transformam no tormento de Catherine no presente é suficiente para a condenar. Seja por irresponsabilidade materna ou omissão de socorro. Então, durante seis episódios temos uma mulher encurralada, amordaçada e homens supostamente autorizados a destruí-la. O sujeito que perdeu o filho é um perverso capaz de premeditar crimes em sequência; o marido é um indivíduo passivo que abandona o barco ao sinal de problema; o filho problemático é um bibelô prestes a quebrar. Já mulher é silenciada e condenada à deriva.
Disclaimer é tanto sobre a fragilidade da verdade quanto a respeito dos preconceitos de gênero para a construção da realidade. De maneira muito inteligente, Cuáron vai nos fisgando com uma trama que parece gradativamente confirmar a tese de que Catherine foi uma traidora fria e (in)diretamente responsável pela morte de um jovem cujo pecado foi apenas ter se empolgado demais com o caso extraconjugal de verão. De um lado, os homens “autorizados” pela “razão” questionam a moral e a conduta de alguém que vai vendo a família, o trabalho e a própria saúde mental se deteriorando aos poucos. Do outro, a mulher cujo abalo parece confirmar a versão do livro no qual aparece como manipuladora calculista. É então que ela, no momento mais crítico dessa jornada angustiante, reivindica a palavra desses homens dominantes e dá a sua explicação da história, revelando algo aterrador que muda completamente a nossa percepção sobre tudo e todos. Na superfície, temos um contra-argumento poderoso capaz de transmutar o suposto algoz em vítima. Aliás, algumas leituras que têm pipocado na internet tratam exatamente dessa virada como uma vitória da verdade sobre a mentira. Mas será que tudo é tão simples assim? É aí que entram complexidades. De tão bem trabalhadas, elas fazem da minissérie uma experiência capaz de nos colocar em estado de reflexão sobre os discursos desse nosso tempo.
É preciso não entrar no mérito da revelação que revira a trama completamente. Há quem não se importe com spoilers, mas, num thriller como esse, saber antecipadamente o que acontece no último episódio realmente estragaria grande parte da jornada que Alfonso Cuarón nos propõe. Sim, pois é preciso primeiro comprar a ideia que o livro nos transmite, mergulhar na compreensão machista da história que pinta a protagonista como uma sedutora calculista e, com isso, cair na armadilha de “compreender o lado masculino”, não oferecendo muita resistência quando a mulher passa a ser atacada por todos os lados. Tanto que somos a levados a temer pelos planos vingativos de Stephen apenas quando eles afetam terceiros. É preciso cair como um patinho no discurso patriarcal para, apenas nos cerca de 50 minutos finais, ganhar uma nova (e chocante) compreensão sobre tudo aquilo. Porém, voltando à questão do estabelecimento da verdade. É errôneo imaginar que a versão de Catherine seja totalmente factual? Como um animal acuado, ela precisa de algo que desarme inimigos quando finalmente consegue a palavra. Alfonso Cuarón enfatiza nas entrelinhas que a versão dela também possui incongruências, conveniências e possíveis distorções. Mas, será que a canonização de si não é necessária nessa circunstância tétrica em que o machismo poderia continuar a condenando, mesmo vítima de uma violência, por qualquer coisa? De toda forma, não existe a verdade, apenas pontos de vista.
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