Crítica


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Sinopse

Mais de dois séculos depois de um apocalipse, habitantes de um luxuoso abrigo são forçados a voltar à paisagem deixada para trás por seus ancestrais. Eles ficam perplexos diante de um universo estranho, violento e complexo.

Crítica

O mundo pós-apocalíptico de Fallout surgiu nos games. O primeiro jogo foi lançado em 1997 e logo se tornou uma febre que possibilitou sequências e o estabelecimento de uma franquia bem-sucedida. Agora, essa história se transformou numa série que mistura faroeste, ficção científica e terror para obter uma iguaria com sabor de cultura pop e pitadas de discurso político. Nela há três protagonistas. Lucy (Ella Purnell) nasceu e foi criada num dos diversos refúgios subterrâneos construídos por uma empresa privada para proteger a população norte-americana em caso de cataclismo atômico (que acontece). Maximus (Aaron Moten) é o escudeiro de um cavaleiro moderno, membro da irmandade militar que supostamente coloca ordem no mundo caótico nascido da tragédia envolvendo várias bombas radioativas. E Cooper (Walton Goggins) era um famoso ator hollywoodiano de faroestes, mas agora é um necrótico, espécie de morto-vivo que transita pela superfície contaminada agindo como caçador de recompensas. Portanto, há aquela que nasceu enclausurada e absorveu apenas o que para ela contaram dos acontecidos históricos; o nativo da realidade destroçada e degradada na superfície que possui pouco (ou quase nenhum) conhecimento dos abrigos subterrâneos; e o elo entre os dois universos distintos, a decadente testemunha das mudanças que levaram a Terra a ser um lugar devastado e extremamente hostil.

A ignorância de Lucy sobre a superfície é utilizada na série como elemento narrativo facilitador. Afinal de contas, é por meio de suas descobertas ao longo dos episódios que o espectador é informado do que aconteceu, de quem está ao lado de quem e do quão agressiva é a realidade na qual os humanos precisam administrar remédios para lidar com os efeitos da radiação. O mundo exterior é muito diferente da seguridade asséptica em que Lucy cresceu, o que não quer dizer que esses abrigos subterrâneos estejam isentos de perigos. Aliás, é por conta do sequestro de seu pai (interpretado por Kyle MacLachlan) na seção 33 que essa protagonista de Fallout decide quebrar o protocolo e finalmente conhecer o ambiente que todos sonham um dia recolonizar. E Lucy encontra toda sorte de sordidez, sendo envolvida na disputa por uma cabeça que literalmente contém chaves para diversos personagens alcançarem os seus objetivos. Então, esse artefato em estado constante de putrefação é um McGuffin, ou seja, um dispositivo sem muita importância em si, mas fundamental para a trama avançar. E à medida que o enredo progride os roteiristas da série vão revelando as obscuridades dessa realidade dura, provocando o espectador com os exemplos do discurso anticomunista comum na Guerra Fria e escancarando habilmente as possibilidades de uma conspiração capitalista como responsável pelo apocalipse.

A série não poupa cenas grotescas, sangue e criaturas agressivas, tampouco nega a violência que em alguns momentos chega a ser bastante gráfica. No entanto, a equipe diretiva não enfatiza a brutalidade dessas consequências terríveis, evitando com isso ultrapassar uma linha invisível do “bom gosto” ao apresentar ferimentos, brutalidades, atrocidades e afins. Com uma aura pós-apocalíptica suavizada por decupagem, fotografia e direção de arte, conjunto que nunca nos mergulha efetivamente numa percepção do sórdido e repugnante, o programa é uma exploração relativamente confortável do universo repleto de doenças, mentiras e traições. Com aspecto quase cartunesco em vários instantes, ele suaviza qualquer vislumbre supostamente repulsivo, a isso preferindo uma abordagem menos ofensiva, ainda que não desvie o nosso olhar das bizarrices. O resultado poderia ser uma jornada pesada pelo apocalipse, mas acaba sendo uma caminhada empolgante por essa realidade alternativa na qual estrangeiras, mentirosos e imorais convergem à descoberta das verdades inconvenientes por trás do processo de quase extinção do planeta. Feitas as ressalvas sobre essa amenização da selvageria em prol de um entretenimento apropriado a fatias mais amplas de espectadores, Fallout apresenta uma boa história, é recheada de personagens interessantes e atrela bem as potencialidades dos gêneros.

Embora Lucy represente o olhar estrangeiro que, uma vez familiarizado, ajuda o espectador a se aclimatar, o personagem mais interessante da série é Cooper, inclusive por ele ser uma ponte fundamental entre os mundos pré e pós-apocalíptico. Ele é chave para a alternância temporal elucidativa, pois os flashbacks sobre tudo o que antecedeu o cataclismo contêm informações fundamentais sobre a intriga e as conspirações misteriosas. Cooper carrega no passado os signos do faroeste clássico e no presente os ícones de uma ressignificação do imaginário desse gênero pelo acréscimo de elementos do terror. Com um típico discurso anticomunista antes que os Estados Unidos fossem bombardeados, ele é construído como um conservador politicamente ingênuo apresentado de modo abrupto às verdades que as corporações e os governos escondem. Assim, por mais que no presente Cooper seja um sabichão com informações suficientes sobre quase tudo, no passado era análogo à Lucy no quesito ignorância sobre a realidade. No fim das contas, Fallout fala sobre personagens que descobrem a verdade soterrada pelas toneladas de mentiras contadas por grupos que almejam obter e manter poder. Cooper acha que seu patriotismo é “natural”, mas não o percebe como discurso comprado; Lucy nada sabe sobre o mundo até se deparar com sua brutalidade; e Maximus é a bucha de canhão militar.

O encerramento da boa (às vezes ótima) primeira temporada faz o que se espera dele: apresenta ganchos suficientemente interessantes para ansiarmos pela já confirmada segunda leva de episódios. Alguns segredos desvendados parcialmente são escancarados por meio do avanço de Lucy rumo às verdades (in)convenientes, estas que também têm partes elucidadas pelo irmão da protagonista. Norman (Moises Arias) expõe a conspiração dos poderosos durante a investigação dos refúgios, por meio da qual descobre a serventia deles no plano capitalista. É interessante que o discurso anticomunista dos personagens mais tradicionais, sobretudo no passado antes desse apocalipse nuclear, seja desmontado pelos acontecimentos. Sim, pois os verdadeiros vilões não são os inimigos do estilo (burguês) de vida norte-americano, os inimigos tipificados como a principal ameaça à América livre – polarização que remonta à Guerra Fria. Os senhores do fim do mundo são exatamente os bilionários e os governantes preocupados apenas com a valorização de suas ações e o preenchimento de seus bolsos. O cenário degradado é fruto direto da relação umbilical entre Estado omisso e iniciativa privada esfomeada. E os criadores de Fallout acertam na conclusão, mesclando aventura e melodrama para manter nossa curiosidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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