Crítica


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Sinopse

O fim do mundo está próximo e as pessoas se preparam para o juízo final. Mas o anjo Aziraphale e o demônio Crowley não estão nada animados com o final dos tempos. Agora, os dois se unem para tentar encontrar o anticristo e evitar que o apocalipse aconteça.

Crítica

Baseada no livro homônimo de Neil Gaiman e Terry Pratchett – que no Brasil ganhou o título de Belas Maldições –, Good Omens trabalha com uma série de narrativas e ícones religiosos em meio a uma grande brincadeira quanto ao iminente fim do mundo. O prevalente tom satírico aparece já no prólogo que desenha o começo da improvável amizade entre o anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demônio Crawley (David Tennant). O primeiro é o guardião do portão leste do jardim do Éden, e, como tal, responsável pela árvore do conhecimento, aquela da maçã proibida que Eva e Adão comem, motivo da famigerada expulsão do paraíso. O segundo é justamente a cobra que tenta os humanos a nutrirem-se do fruto do conhecimento, incorrendo no chamado "pecado original". Portanto, eles são, além de testemunhas, de certo modo responsáveis pelo início da odisseia dos mortais na Terra. Adiante, frente ao Armageddon, resolvem unir forçar para deter o Anticristo, simplesmente porque que se apegaram às coisas que não concernem ao sagrado e ao profano, mas a ambos.

O pilar de Good Omens é o trabalho conjunto excepcional de Michael Sheen e David Tennant, cujas composições impagáveis são essenciais para que esse mundo calcado em absurdos celestiais e infernais funcione a despeito das fragilidades estruturais. Aziraphale é dono de uma livraria, sempre veste cores sóbrias (e xadrez), além de ser apreciador de boas comidas e bebidas. Já Crawley é um protótipo de roqueiro, disposto a fazer seu trabalho, desde que isso não atrapalhe o cotidiano de bon vivant. Todavia, apesar de todas essas diferenças essenciais, mesmo lotados em lados absolutamente opostos, eles se tornam melhores amigos através dos séculos, à revelia do Céu e do Inferno, que não estão lá muito preocupados em checar seus relatórios. O sarcasmo da série passa, muitas vezes, pela forma como ambas as “administrações” são criticadas, com ideologias contrárias perdendo terreno às similaridades, vide a inclinação por disputas como a guerra.

Nesse molho geralmente saboroso, outros personagens também surgem para reforçar a ideia de dualidade arrefecida. Assim, Newton (Jack Whitehall), descendente da linhagem de caçadores de bruxas, atrapalhado engenheiro de computação, se enrabicha exatamente por Anathema (Adria Arjona), aquela que dá sequência a uma linhagem de feiticeiras, guardiãs das únicas profecias realmente corretas. Shadwel (Michael McKean), o líder dos “homens de bem”, não consegue esconder a queda pela vizinha, Madame Tracy (Miranda Richardson), a quem ele faz questão de desprezar cotidianamente. São, portanto, essas relações de atração entre seres pretensamente antagônicos que conferem identidade ao decurso da série. Infelizmente, no entanto, as possibilidades contidas em cada um desses núcleos são desperdiçadas, senão integral, mas parcialmente, em virtude da pressa com que a trama anda e a necessidade de encaixar tudo em míseros seis episódios.

Há uma mitologia praticamente inesgotável em Good Omens. Embora a série seja divertida e tenha momentos ótimos, fica a sensação de um enorme potencial diluído. Mesmo frequentemente perdendo intensidade na transição entre as diversas coisas que acontecem ao mesmo tempo, em lugares e a pessoas diferentes, o programa apresenta passagens impagáveis, como a demonstração da presença de Aziraphale e Crowley em episódios-chave da História contada nas páginas da bíblia. Assim, o demônio verbaliza o quanto acha desnecessário Jesus sofrer daquele jeito na cruz e, logo depois, faz algo parecido ao alertar o colega anjo de que Deus (voz de Frances McDormand) vai matar inclusive crianças no grande dilúvio. O personagem de Michael Sheen fica evidentemente sem respostas, apenas repetindo, sem tanta convicção e um tanto constrangido, que não se deve questionar o inefável plano do Todo-Poderoso. É uma crítica bem-humorada ao cristianismo.

Em Good Omens não se trata exatamente de Céu contra Inferno, mas da insólita aliança de ambos em favor da guerra. O Anticristo (Sam Taylor Buck), menino com cara de bonzinho e cabelos encaracolados, vale o quanto representa como símbolo, não passando de uma ferramenta, assim como os estilosos quatro cavaleiros do apocalipse, motoqueiros sinistros e não menos atrapalhados que as demais figuras em cena. Adão e Eva negros e a menina que vocifera circunstancialmente contra o patriarcado pontuam o tom contemporâneo dessa narrativa que, de modo oscilante, questiona as doutrinas e não as leva tão a sério. O Céu não está preocupado com o Bem, mas com vencer a disputa. O Inferno age de forma parecida. Dá para dizer que Neil Gaiman e Terry Pratchett inspiram uma metáfora política. Os polos representam as ideologias de esquerda e direita e os humanos são os eleitores. Uma série divertida e mordaz, pena sua inconsistência e a notável perda de fôlego.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.