Crítica


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Sinopse

O veterano do exército norte-americano Atticus Turner vê sua vida mudar com o desaparecimento do pai. Morador da Chicago de 1954, ele decide embarcar numa viagem de carro ao lado do tio George e de Letitia, sua melhor amiga desde a infância. Porém, a jornada se revela muito mais misteriosa e perigosa do que eles previam.

Crítica

A primeira cena de Lovecraft Country já é um deleite aos fãs da ficção científica. Não exatamente pela simples mistura da narrativa bélica com a invasão alienígena de toques saudosistas, mas justamente por conta dessa estética nostálgica alusiva aos filmes dos anos 1950 que se valiam do gênero para criar pontes simbólicas com a realidade. Na série baseada no livro Território Lovecraft, de Matt Ruff, o debate acerca da segregação racial é embalado em enigmas que precipitam os personagens rumo ao inimaginável. Atticus (Jonathan Majors) é um jovem negro, veterano do exército, que volta à sua cidade natal para procurar o pai desaparecido. O preconceito não tarda a lhe alcançar, como quando, na companhia de uma senhora, precisa completar o percurso a pé simplesmente porque o veículo escolhido para resgatar os passageiros encalhados não prevê espaço de marginalização. E durante esse primeiro episódio as pessoas sofrem brutais hostilidades.

Embora alguns eventos soem acelerados demais em prol da necessidade de chegar logo ao destino, Lovecraft Country mostra o quão está comprometido com o desenho de um painel racial repleto de sintomas. Porém, esse conjunto não fica subordinado apenas à demonstração da agressividade branca, do terror cotidiano imposto pela parcela que deve (e muito) aos negros, mas que os encara como se eles fossem aberrações. É importante, talvez na mesma medida, mostrar o quanto a comunidade vilipendiada é feliz/criativa/culta longe da intolerância. Seus membros são apartados dos estereótipos neles tantas vezes colados indiscriminadamente. Atticus é um herói de guerra empenhado em encontrar o pai, em meio a isso nem dando importância ao fato de pairar sobre ele um mistério. Fala-se em herança, em assumir posição de direito. Intrigante.

Mas, pouco, de fato, nos prepara ao que sucede a batida policial com óbvio intuito de extermínio. Depois de mostrar que o horror é um companheiro infelizmente cotidiano na vida dos negros estadunidenses, ainda mais naquela época, o diretor Yann Demange literalmente solta os bichos num encontro bastante intenso entre o metafórico e o inesperadamente literal. Monstros saídos diretamente da imaginação do escritor H. P. Lovecraft – considerado um dos escritores revolucionários do horror – aparecem para mostrar que há mais no horizonte dos que homens brancos dispostos a matar por puro preconceito. Não há economia de sangue e violência gráfica. O mundo aparentemente ilusório das histórias lidas pelo protagonista ganha vida, de certa maneira rasgando as fronteiras da ficção de modo abrupto e selvagem. Porém, é uma pontualidade nesse episódio alicerçado na apresentação da crueldade discriminatória, articulada até ali sobretudo em forma de discurso.

Primeiras impressões podem ser ilusórias. Frequentemente, debutes tendem a ser demasiadamente promissores ou, no sentido oposto, enganosamente mornos. A função da largada é fisgar o espectador. Há muito a ser elaborado em Lovecraft Country, mas o clima de mistério do começo, e, principalmente, a fusão entre a realidade social e a fabulação são instigantes. Também sobressai a reconstituição de época, a esmerada direção de arte. Contudo, o que salta mesmo aos olhos é essa vontade empolgante de oferecer uma perspectiva histórica negra utilizando a estética vigente no sci-fi e no terror dos anos 1950 nos Estados Unidos. Quanto aos personagens, todos se mostram pouco, embora deles se retenha (por enquanto) o suficiente. Difícil imaginar qual será a relevância de Letitia (Jurnee Smollett) ou até aonde vai a ignorância do tio George (Courtney B. Vance). Mas, a julgar pela forma que Sundown termina, as respostas não devem demorar a aparecer.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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