Crítica


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Sinopse

Assane Diop é um ladrão gentil que, inspirado pelas aventuras de Arsène Lupin, deseja se vingar de uma família rica. Quando era criança, seu pai foi falsamente incriminado pelo roubo de um colar valendo milhões de euros. Agora, Assane planeja resgatar o objeto precioso e revelar as mentiras do passado.

Crítica

O conceito por trás desta atualização de Arsène Lupin ao século XXI se revela bastante inteligente. Ao invés de propor uma ilustração literal, com o personagem de cartola e monóculos na sociedade de 114 anos atrás, o criador George Kay privilegia uma adaptação livre. Sai de cena Arsène, homem de tempos analógicos, representando a França durante a Belle Époque, para entrar Assane Diop, homem negro, filho de imigrantes e perito no uso de drones, manipulação de imagem e roubo de dados sigilosos. “Lupin é meu método”, declara o herói. Em oposição ao “ladrão cavalheiro” dos livros de Maurice Leblanc, ele se converte num gentil malandro, do tipo que faz besteiras mas continua irresistível aos olhos das mulheres, das crianças e dos colegas de trabalho. Kay aproveita a habilidade da figura literária em mudar de nome e aparência para reimaginá-la na pele de um dos atores mais queridos na França. A ideia de que o intérprete alto e forte passe despercebido com o uso de casacos e boinas soa pouco plausível, no entanto, esta é apenas uma das concessões que os criadores solicitam ao espectador para imergir na curta temporada inicial.

De fato, o roteiro facilita o trabalho do ladrão para tornar a aventura mais ágil e reforçar o alcance de seu talento. Ele invade prédios fortemente protegidos sem grande esforço, hackeia o site do governo num piscar de olhos, planeja assaltos complexos em questão de horas e mobiliza um esquema caríssimo para cada golpe, sem que se saiba ao certo de onde provém tamanho capital. Objetos são introduzidos ou retirados de bolsos com facilidade espantosa, e os traços característicos de Omar Sy se convertem na figura de um homem tão comum que se perde na multidão. Ao menos, o roteiro possui a malícia de utilizar uma explicação social por trás desta invisibilidade seletiva: enquanto homem negro, de ascendência africana, Assane é naturalmente desprezado pela elite. Os cinco episódios possuem bons momentos de “racismo cotidiano” – leia-se: não o enfrentamento truculento, mas o desprezo silencioso das altas classes que não são preconceituosas, imagina, porque têm funcionários negros em casa, e estes são “quase da família”. Por ocupar a base da pirâmide, nenhum poderoso acredita na capacidade do protagonista em fraudar um sistema complexo, razão pela qual seus disfarces coincidem com homens do povo: o faxineiro do museu, o estudante tímido, o guarda boa-praça, o técnico atrapalhado de informática.

O golpista faz da exclusão social uma forma de superpoder, talvez tão exagerado quanto em histórias cartunescas, porém baseado numa configuração verossímil. Isso não reduz o maniqueísmo da trama: quanto mais poderosos os personagens, mais odiosos e desumanos serão (caso de Hervé Pierre e Vincent Garanger), ao passo que os marginais se tornam gentis camaradas (caso da esposa que Assane precisa “fazer sorrir”, do colega de quarto na prisão e do policial de menor popularidade na delegacia). Lupin (2012 - ) faz questão de distribuir democraticamente sua representação étnico-racial: há pessoas negras ao lado de Lupin, mas também como capangas dos vilões, e personagens de origem magrebina de ambos os lados. A série concebe uma França multiétnica, orgulhosa de suas raízes literárias e seu patrimônio histórico, porém alertando à soberba dos milionários. É claro que esta possível crítica se torna branda até demais (os planos dos malvados são imputados ao mau-caráter destes, mais do que à posição de domínio), apesar de preservar o olhar afetuoso às minorias na França. Face aos homens muito gentis ou muito perversos, as mulheres adquirem as personagens mais ambíguas, caso de mãe e filha representadas por Nicole Garcia e Clotilde Hesme e, em menor medida, a ex-esposa interpretada por Ludivine Sagnier.

Apesar da ironia de colocar um dos atores franceses mais famosos do mundo na pele de um sujeito irreconhecível, Omar Sy cumpre bem as demandas do personagem. O ator sempre se excedeu na figura do malandro de bom coração (vide Intocáveis, 2011, Samba, 2014, Chocolate, 2016 e O Doutor da Felicidade, 2017), interpretando o herói com facilidade. As cenas exigentes dramaticamente representam desafios que Sy nem sempre responde à altura, no entanto, o autor busca escapar com as mesmas artimanhas de seus personagens: um grande sorriso, o ar bufão e o olhar de quem procura nossa cumplicidade. Em papel limitado, Clotilde Hesme se destaca enquanto elo possível e ambíguo entre os dois mundos (aquele dos ricos corruptos e dos pobres em busca de justiça). Nos flashbacks da infância do herói, os atores mirins também desempenham com surpreendente naturalidade os papéis de estudantes. O cinema francês sempre encontrou métodos funcionais para lidar com crianças sem idealizá-las, nem convertê-las em figuras sorridentes de comercial de televisão. Nota-se a consistência do elenco composto por grandes nomes em papéis discretos (resultado do peso adquirido pela Netflix enquanto produtora).

Lupin resulta num projeto muito confiante de si próprio, a ponto de sequer concluir seu dilema principal (a luta contra a família Pellegrini) durante cinco sucintos episódios, que poderiam facilmente integrar uma temporada mais longa. A série nasce enquanto preparação à sequência, como se a história inicial constituísse mero teaser do que está por vir. O texto possui a astúcia de abordar em detalhes o conflito de uma narrativa específica de Arsène Lupin (a respeito do roubo das joias) enquanto faz referência a outros golpes praticados pelo ladrão ao longo dos episódios. Isso resulta numa estrutura fluida e inesperada, mesmo para os fãs assíduos da saga literária. A iniciativa serve enquanto ferramenta de sustentação para a literatura francesa, para o patriotismo do país, e também para o turismo na cidade de Paris (valorizado por planos aéreos, perseguições pela cidade e imersões no Museu do Louvre). Lupin visa atingir jovens e adultos, de qualquer vertente ideológica, mesclando de maneira equilibrada a ação, o humor, o suspense e o drama. Trata-se de um projeto comercial finamente calculado para atingir o maior número possível de espectadores, razão pela qual adota poucos riscos, tanto cinematográficos quanto sociais. Entretanto, resulta num produto competente dentro dos gêneros abordados.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
6
Daniel Oliveira
5
MÉDIA
5.5

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