Crítica
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Sinopse
Jason Dessen, pai de família, é sequestrado para um mundo onde sua vida não é sua vida. Sua jornada para voltar para casa o leva a universos que ele nunca poderia ter imaginado.
Crítica
Há poucas figuras tão tradicionais no audiovisual norte-americano quanto o “homem de família”. Tradicional no sentido conservador do termo, afinal de contas as famílias nucleares patriarcais são verdadeiros pilares à manutenção do status quo. Tudo o que diverge desse padrão tende a ser encarado como anomalia a partir de uma perspectiva antiquada e obscurantista. Isso quer dizer que toda e qualquer história que mostre um líder familiar masculino tentando manter a unidade doméstica preservada é automaticamente reacionária? Talvez não, mas seguramente carrega um lastro desse pensamento anacrônico que exclui as demais variáveis ao pensar uma sociedade saudável e próspera. Pense, por exemplo, em como a Marvel tem construído recentemente o processo de amadurecimento de seus super-heróis: antes de qualquer coisa, transformando-os em pais. Assim, o imaginário coletivo continua atrelando maturidade à paternidade. Em Matéria Escura, o protagonista é Jason Dessen (Joel Edgerton), professor de física numa universidade repleta de alunos desinteressados. Mas, se a carreira não é das mais empolgantes, ele encontra felicidade na harmônica rotina caseira com a adorada esposa Daniela (Jennifer Connelly) e o filho Charlie (Oakes Fegley). Isso até ser sequestrado por uma variante sua vinda da realidade alternativa onde abdicou da família para ter uma carreira bem-sucedida.
Jason 2 (Edgerton), o vilão dessa série baseada no livro homônimo de Blake Crouch, é um homem com medo de compromisso e assombrado por arrependimentos. Na sua realidade, ele descartou a paternidade quando Daniela anunciou uma gravidez inesperada, com isso sepultando a possibilidade de construir a sua família, logo privilegiando a carreira em ascensão. Depois de idealizar e concretizar um artefato absolutamente revolucionário que confere acesso às infinitas possibilidades do multiverso, ele procura um contexto alternativo em que tenha feito justamente a escolha pela família no momento-chave para a definição de seu futuro. Por isso, Jason 2 sequestra Jason, o obrigando a trocar de lugar, ou seja, assumindo o papel de “homem de família”. Os roteiristas constroem o antagonismo entre as variantes principais com base numa escala de valores bastante tradicional. Jason é o invejado, sendo contente até mesmo em sua rotina enfadonha na universidade desprovida de desafios à altura de seu intelecto, porque o mais importante é ter um lar feliz ao qual retornar depois de cada dia de esforço letivo. Jason 2 é o invejoso, o cientista bem-sucedido que não encontra mais satisfação numa rotina profissional exuberante e num cotidiano pessoal carente dessa noção de amor familiar. Fica claro que, para o autor do livro e os roteiristas, família é o suprassumo da existência e pilar da realização pessoal.
Mesmo utilizando de maneira competente a moldura da ficção científica, pontuando a trama com especulações instigantes e um ritmo capaz de prender a nossa atenção, os criadores de Matéria Escura não conseguem esconder a primazia do “homem de família”. Tanto que até mesmo uma personagem superimportante como Amanda (Alice Braga) existe estritamente para reforçar os predicados do protagonista como provedor fiel e digno. Namorada de Jason 2, ela logo compreende que foi abandonada pelo cientista em busca do tempo perdido e resolve, sem muito pestanejar, ajudar Jason na procura quase impossível pela porta que o levará de volta ao seu mundo. Em vários episódios temos Jason e Amanda explorando incessantemente essas probabilidades infinitas – cada pequena escolha que alguém fez em algum momento, excluindo todas as demais possibilidades, criou uma variante mais ou menos parecida com o mundo de Jason. O roteiro distribui as inúmeras explicações sobre o funcionamento da caixa, da droga indutora, bem como as complexidades do multiverso de modo eficaz, escorregando apenas ao esclarecer tudo demasiadamente. Um pouco de mistério não faria mal a essa boa série que felizmente lida com sentimentos, cenários personagens e assuntos adultos. Já é alguma coisa, não? Então, do ponto de vista do “contar uma história”, temos um conjunto bastante eficiente.
Mas, voltando à personagem de Alice Braga como confirmação dessa ode à figura do “homem de família”. Praticamente destituída de subjetividade, ela acaba se tornando somente uma escudeira fundamental para Jason voltar ao tão almejado seio da sua família. Tanto que num momento em que aparentemente Jason e Amanda cederão ao desejo e à intimidade construída ao longo dos últimos dias, o homem decide não avançar para consumar o sexo. Tudo certo, desde que esse movimento não servisse tão escancaradamente para assinalar uma pretensa virtude do personagem: a capacidade de coibir os próprios impulsos emocionais e carnais em função do retorno “ainda casto” à Daniela e Charlie. Desse modo, o personagem perde um pouco a consistência como gente de carne e osso, tornando-se apenas o mensageiro de uma ideia conservadora, exatamente a do "homem de família" que luta contra ele próprio se isso for preciso para manter a unidade familiar a salvo de qualquer risco. Aliás, essa noção de “lutar consigo mesmo” adquire uma natureza literal nos últimos episódios, quando descobrimos que Jason terá que vencer bem mais do que a resistência do seu algoz, Jason 2, para conseguir finalmente recuperar o seu lugar como patriarca do Dessen. Um encerramento repleto de conveniências e obstáculos sendo tirados da frente, praticamente, como num passe de mágica.
Lá pelo quinto ou sexto episódios, Matéria Escura faz um movimento que poderia a engrandecer do ponto de vista psicológico e emocional. Enquanto Jason ainda está tentando encontrar a porta que leva ao seu mundo, Jason 2 começa a ter dificuldades para lidar com o cotidiano de “homem de família”, desabafando sobre isso com uma psicóloga também interpretada por Alice Braga. Nas conversas fica muito evidente que a dificuldade de adequação da variante se dá por conta de sua natureza: como ele não é propenso aos relacionamentos, por que diabos conseguiria usufruir plenamente de um casamento sem o sentimento de asfixia? Esse era o momento de tornar as coisas mais cinzas, de colocar em jogo a noção das diferenças (grandes ou pequenas) causadas ao longo de nossas vidas pelas escolhas feitas, mas também pelo temperamento de cada um influenciado por uma série de fatores. No entanto, os criadores logo superam essa possibilidade de encorpar o enredo com algo para além da homenagem ao provedor protetor que navega pelo multiverso como se fosse um Odisseu versão sci-fi em busca do retorno à sua Ítaca (no caso, Chicago). Enfim, temos uma história ora excitante, ora sonolenta, mas ainda assim bem contada. Porém, é preciso ter ciência de que o discurso, além de romântico, é bastante conservador, pois reúne todos elementos em torno do elogio ao incansável “homem de família”.
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