Crítica


4

Leitores


3 votos 8.6

Sinopse

"A amizade entre as mulheres solteiras que moram em Nova York era comum e desconhecida, e os porteiros que cuidam delas atuam com guarda-costas, confidentes e figuras paternas".

Crítica

Talvez a parte mais perturbadora deste primeiro episódio seja a embalagem aprazível revestindo um relacionamento bastante problemático. Como afirma o título, estamos tratando de “amores modernos”, e embora a relação entre a jovem Maggie (Cristin Miliotti) e o porteiro Guzmin (Laurentiu Possa) não constitua um laço romântico, o projeto sugere que existe um carinho verdadeiro, um laço belo e duradouro entre esses dois. Bom, esta é a parte estranha do episódio inicial: a normalização de um relacionamento unilateral e potencialmente abusivo, ou ainda a tolerância masculina opressora dentro de uma série descolada onde se pretende mostrar o aspecto progressista dos relacionamentos nova-iorquinos (vide os diversos beijos gays da vinheta de abertura). As relações de sexo e de poder (patrão e empregado, morador e porteiro) são vistas pelo prisma do exotismo, da improbabilidade. O roteiro acredita que o simples fato de aproximar a americana rica e o refugiado pobre constitui algo encantador.

Quando Maggie volta para seu apartamento com um rapaz gentil que acaba de conhecer num encontro, ela enfrenta o olhar de condenação de Guzmin. “Ele não vai mais te ligar”, decreta à moradora. Dito e feito: o rapaz nunca mais procura Maggie. Outros casos se sucedem: o porteiro de aparência carrancuda e sotaque do leste europeu antecipa a morte dos relacionamentos de Maggie. Ela aceita, pede desculpas por levar cada novo rapaz ao apartamento, pede compreensão. Quem dita as regras é Guzmin, que parece de fato interferir na vida da garota. O porteiro nunca é visto interagindo com outras pessoas, ele nunca troca de turnos com outro funcionário. Este estranho personagem existe apenas para a moradora, quando ela passa no hall, para julgá-la e dizer o que é melhor para ela. Existe um aspecto sobrenatural neste homem, mistura entre anjo protetor e pai conservador que não deseja ver e filhinha com outro homem. É difícil não enxergar a perversão da premissa.

Ainda mais questionável é a construção deste homem-fantasma. Sabemos que ele vem da Albânia, mas a descrição se interrompe por aí. Ele teria família? Desejos para o futuro? De onde viria tanto conhecimento para um homem que nunca vemos lendo ou se instruindo? O episódio jamais se preocupa em dar voz a Guzmin, nem protagonismo. Ele não possui razão de existir fora da interferência na vida de Maggie. É difícil se identificar com um homem tão desprovido de identidade, de histórico. Tratar a gentil hipster norte-americana com calma e tolerância (vide as diversas cenas da protagonista lendo em cafés pela cidade) enquanto se reduz o imigrante ao “porteiro albanês” soa um tanto paternalista. “Ele é mais que um porteiro!”, briga a protagonista, sem no entanto desenvolver sua defesa. Guzmin é o homem que está sempre lá, a sombra parte benevolente, parte intrusiva. Esta metáfora é bela dentro de um realismo fantástico, porém contraproducente para o realismo social.

Esteticamente, este início se revela pouco ambicioso: o diretor John Carney busca introduzir um ou outro plano mais longo para imprimir ritmo (dentro do apartamento, ou na chegada ao prédio), mas de resto, se contenta com planos e contraplanos, além de passagens do tempo acadêmicas (fades do dia para a noite, letreiros na tela). Cristin Miliotti, com seus olhos expressivos e bom timing para comédia, traz algumas camadas à protagonista, no entanto, a insistência de construir Guzmin como o clichê potencialmente perigoso e truculento, com a viseira sempre baixa, a voz monocórdia e as frases de efeito reduz o alcance do personagem. Neste primeiro episódio, o humor se constrói na base da simplificação e do estereótipo, ao invés do imbróglio suficientemente cômico por si só sobre o possível laço paterno entre uma jovem gentil e um porteiro que, infelizmente, nunca se torna mais do que um acessório aos dilemas pessoais de Maggie.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)