Crítica


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Sinopse

A história de Neymar Jr., um dos atletas mais bem pagos e famosos do mundo. Dos primeiros passos no Santos, passando pelo destaque na seleção brasileira e chegando às glórias no Barcelona e no Paris Saint Germain.

Crítica

Diante de um recorte biográfico, é sempre bom partir da identificação do ponto de vista do contador da história e de qual distância ele toma de seu objeto de estudo. Na minissérie Neymar: O Caos Perfeito, o cineasta David Charles Rodrigues nos dá uma pista para isso ao literalmente conferir a Neymar a decisão sobre como as coisas devem começar e terminar. Transferir voluntariamente ao protagonista as rédeas de sua narrativa é um gesto indicativo. Algum leitor pode discordar, já que o astro não tem efetivamente atendido o pedido de iniciar com uma sobreposição de manchetes negativas que depois serão gradativamente refutadas pelos “fatos”. E a “rebeldia” do realizador é apenas aparente, pois mesmo que não faça diretamente o solicitado pelo personagem, David constrói a história exatamente sobre esse eixo dos atenuantes de uma imagem midiaticamente arranhada. Mas, é bom também compreendemos que há dois protagonistas por aqui: Neymar pai e Neymar filho. E ambos desempenham papeis bastante específicos para a construção da marca Neymar, algo que os transcende como indivíduos. De um lado temos o retrato de um homem de negócios que zela de modo diligente pelos interesses do seu menino, custe o que custar; do outro, o jovem que sonhou em ser esportista e lida com as pressões de ter se tornado uma das pessoas mais famosas e cobradas do mundo.

Neymar pai aparece geralmente demonstrando um pragmatismo indicativo das experiências passadas como sujeito humilde que cortou um dobrado para sustentar a família. Ele é o elo sólido da parceria comercial, aquele que entende as falhas do seu maior produto, o parente que garante o investimento em Neymar Jr. como uma atividade lucrativa. Em vários momentos de Neymar: O Caos Perfeito há a defesa de um modelo de negócio que tem diversos braços, de uma estrutura muito bem montada e do projeto traçado a longo prazo. Especialmente quando os holofotes estão sobre o pai, a minissérie adquire contornos de vídeo institucional, como se tentasse mostrar ao público (especialmente aos detratores do futebolista) que nem tudo é inspiração, pois há muita transpiração nos bastidores que transformam o craque do PSG e da seleção brasileira numa marca a ser valorizada. Embora sejam de certa forma reveladores, são escassos os instantes em que a relação pai/filho/empresário é devidamente revirada. David Charles Rodrigues trata com displicência a revelação de Neymar Jr. sobre ver o pai atualmente bem mais como uma figura profissional do que pessoal. O cineasta deixa a sentença reverberar na cabeça do espectador, mas praticamente não dá subsídios para aprofundar raízes e consequências. Neymar pai é o “policial mau” para Neymar filho se tornar o talentoso “policial bom”.

O viés de peça institucional fica mais escancarado quando analisamos o posicionamento do diretor David Charles Rodrigues em relação aos seus objetos de estudo e a pouca distância que ele toma de ambos. Neymar: O Caos Perfeito demonstra um profundo respeito e uma admiração equivalente pela trajetória do menino que saiu do interior do estado de São Paulo, fez uma carreira brilhante no Santos, se transferiu para o elenco estelar do Barcelona e depois assumiu o protagonismo de um dos projetos esportivos mais ambiciosos e caros do futebol recente, o do Paris Saint Germain. O documentarista tem acesso privilegiado aos bastidores da empresa que administra a carreira de Neymar, às casas do craque e aos personagens importantes de sua vida. Há nisso um tom quase “oficial”. E essa pegada praticamente inviabiliza a investigação consistente das controvérsias. Talvez para não ser tachado de “chapa branca”, David cita as polêmicas públicas, as lesões, as dificuldades de adaptação, as tensões privadas, a acusação de estupro e a desilusão de alguns torcedores. Tudo está efetivamente ali, mas com qual peso? Esses dados são atirados como se o realizador estivesse cumprindo um protocolo para não ser acusado de acobertar os pontos negativos, já que nenhum deles ganha destaque sequer próximo ao dedicado às conquistas. Além disso, sempre tem um nome de enorme peso para exaltá-lo.

Aliás, as discussões em torno das polêmicas que envolvem Neymar Jr. parecem existir apenas como um reforço de sua imensa capacidade de superação. Para cada citação de um problema, há o contraponto oferecido por alguém famoso que celebra as qualidades do “menino Ney”. Pode-se dizer que o caminho assumido por Neymar: O Caos Perfeito é da narrativa de panos quentes, bastante conveniente à construção da imagem de um herói falível. David Charles Rodrigues não quer realmente entender o fenômeno, bem como os seus eventuais erros. Ele prefere festejar o talento de Neymar Jr. para levantar das porradas que a vida dá e seguir adiante encantando plateias mundo afora. Por isso a associação com o Batman é verbalizada em duas ou três cenas, mas constante pelo quadro na casa de Neymar Jr. que o mostra com o rosto dividido: de um lado o Homem-Morcego, do outro o Coringa. A quebra de uma ideia de perfeição faz parte do que parece uma estratégia para continuar promovendo o futebolista, desta vez como ser humano "comum": homem de família, bom filho, amigo de todas as horas dos seus “parças”, admirado por Lionel Messi, David Beckham, Pelé, Luiz Suárez, Thiago Silva, Ángel Di María, Daniel Alves e Kylian Mbappé. E esse oficialismo incomoda. Estamos diante de algo desenhado narrativamente para nos convencer, estratégia narrativa que cabe mais à publicidade e à propaganda do que ao audiovisual de cunho artístico. Trocando em miúdos: é um comercial de três horas.

No ramo das biografias, a hagiografia é a descrição da vida dos santos, beatos ou de qualquer personagem tão puro que mereça admiração incondicional. Neymar: O Caos Perfeito é um produto que faz parte do plano de carreira constantemente enfatizado ao longos dos três episódios por Neymar pai. Por ser alinhado às tendências da nossa contemporaneidade, não se presta a simplesmente elogiar. Foi-se o tempo em que o espectador era ingênuo ao ponto de acreditar que alguém poderia passar uma existência inteira sem falar ou fazer besteiras. Ademais, estamos na era da informação e Neymar Jr. é um sujeito midiático, portanto suas quedas não são necessariamente segredos de Estado. Então, a estratégia de David Charles Rodrigues é reiterar os contratempos e polêmicas que já conhecemos, mas se focar mesmo na celebração do menino que está crescendo ao ponto de virar homem – até a gíria “o pai tá on” é utilizada para assinalar essa notável mudança de estatuto. Ao que parece, o gestor de sua carreira aceita ser visto num papel às vezes quase antipático, embora também prevaleça constantemente o elogio às suas atitudes como protetor. Como bom empresário, Neymar pai sabe que pouco importa se ele for tido como azedo em certos instantes, pois o que importa é mostrar o filho deixando de ser o menino Ney, inclusive ao enfrenta-lo na única cena de discussão. Não nos iludamos: num projeto oficial como este, as pessoas autorizam o que desejam mostrar de si. Tudo é calculado para reconfigurar uma imagem que, assim, precisa ganhar outros tons visando os anos que vêm pela frente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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