Crítica


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Sinopse

Psicoterapeuta que atende pacientes em processo de transição de gênero, Romeu é casado há dez anos com a advogada Lúcia, mulher trans, e pai de Paulo e Manu, ela uma garota transexual. Ele esconde de todos o hábito de se vestir de mulher.

Crítica

“Eu tenho alto grau de passabilidade cis”. A frase de abertura desta série pode soar incompreensível para grande parte da população atual, mas possui o mérito de esclarecer em poucos segundos de quais indivíduos o projeto fala, e sob qual ponto de vista. A série concebida por Rodrigo Ferrari e David França Mendes mergulha numa “família tradicional brasileira”: mãe e pai, casados, com filho e filha. No entanto, o pai, um psicanalista respeitado, nutre desejos de se travestir de mulher, sem compreender a qual ponto a feminilidade determinaria sua identidade de gênero ou orientação sexual. A mãe é travesti, assim como a filha. O filho não mora com eles, porém nos poucos momentos em que retorna, demonstra sua ojeriza aos corpos e identidades diferentes dos seus. A foto de família, símbolo perfeito da unidade patriarcal, é subvertida pelo interior através deste lar LGBT onde todos buscam manter as aparências enquanto reproduzem violências da sociedade conservadora. Mesmo assim, são invadidos por meio das frestas que invadem cada cômodo. Quando a esposa dorme, o marido se levanta sorrateiramente e experimenta vestidos. Quando os pais não estão olhando, a filha se prostitui no cômodo do térreo. É impossível manter uma embalagem conformista: Nós consiste numa experiência de transbordamento, ou seja, de ruptura de fronteiras.

Uma vez que a câmera mergulha nesta casa, ela não sai mais. Literalmente. Há muitos projetos no audiovisual brasileiro recente dedicados ao retrato de indivíduos LGBTQI+, diante dos quais se costuma debater apenas a qualidade da representação destes corpos e identidades – ou seja, o seu tema. Chega a ser um alívio encontrar uma obra a partir da qual se possa discutir tão apaixonadamente as escolhas estéticas. O fato de confinar toda a interação familiar dentro de casa poderia resultar num aspecto teatral, no pior sentido do termo: rígido, pouco dinâmico, frontal, interagindo pouco ou mal com o cenário. Ora, neste caso, o lar se torna menos um palco do que um organismo em transformação. Seria fácil incluir ruídos da rua, mostrar o jardim da frente ou filmar algum personagem saindo com o carro da garagem. No entanto, ao impedir qualquer forma de olhar para fora, os personagens se veem obrigados a interagirem um com o outro. Na ausência de outras pessoas – poucos coadjuvantes adentram aquele espaço – este se torna, metonimicamente, o retrato da sociedade inteira: duas travestis, um homem de sexualidade indefinida. O rapaz branco, heterossexual e cisgênero não por acaso está ausente, e não sente pertencer àquele lugar. Uma cliente travesti e um amigo homossexual aparecem com mais frequência.

Ao invés de ilustrar o choque da única pessoa gay/lésbica/trans em meio à sociedade cisnormativa e heteronormativa, como na maioria das narrativas, aqui é a heterossexualidade e a masculinidade frágil que se tornam minorias, inadequadas, vistas com estranhamento. Há um aspecto tão fantasista (pelos espaços) quanto naturalista (pela fluidez dos corpos) na direção. Por isso, não se estranha que o lar da família de classe-média contenha uma espécie de camarim vermelho-aveludado, onde o pai se monta e a filha se prostitui. O cômodo não é escondido, pelo contrário, ele constitui um anexo da sala de estar. A porta não é fechada a chaves, afinal, não há fronteiras definitivas. O preconceito com a prostituição da filha parte da mãe, uma “travesti arrogante” nas palavras de sua cliente. “Você tem que se dar ao respeito primeiro”, lembra a mãe conservadora. Já a ridicularização das roupas femininas do pai provém da filha travesti. Ninguém é colocado na posição de vítima ou algoz, de opressor ou oprimido. Estabelece-se uma ciranda de incompreensões: todos naturalizam suas identidades, ao passo que admiram com estranheza a identidade alheia. Para uma série sem o lado de fora, os criadores conseguem trazer uma impressionante configuração da alteridade entre quatro paredes.

A construção das imagens é deslumbrante. A cinefilia pop se acostumou a apreciar a estética ostensiva, aquela que chama atenção a si mesma, seja porque a câmera se move por todos os lados ou porque os personagens brilham no escuro. No entanto, as escolhas mais refinadas provêm de uma produção enxuta, porém ciente de suas escolhas. A direção de fotografia de Daniel Venosa ilumina à perfeição cada cômodo, brincando muito bem com os reflexos nos espelhos, os quadros-dentro-do-quadro, as simetrias, os delicados zoom-ins e zoom-outs dançando dentro do cenário estanque. Quando a mãe abandona o lar, a câmera a deixa partir. A imagem dá um passo para trás, efetuando um afastamento que deixa a casa ainda maior, mais vazia, mais escura. Cada enquadramento é muito bem pensado, valorizando a excepcional direção de arte de Daniel Flaksman. A transição entre realismo e fantasia remete aos cenários de Fassbinder (sobretudo As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, 1972) e às reuniões familiares tragicômicas de François Ozon (em especial Sitcom: Nossa Linda Família, 1998). Ainda melhores são as incursões assumidamente fantásticas, espécies de sonhos-pesadelos sobre as fissuras da família tradicional. Os flashes com a família embalada em plástico, a Pietà transexual e a fotografia fúnebre dos quatro reunidos constituem elementos capazes de comentar a narrativa enquanto a mesma se desenvolve. Nós adota um caráter cíclico, retornando aos mesmos impasses e traumas, até confrontá-los de fato – como numa terapia.

O aspecto terapêutico também se espelha nas narrações em off de cada personagem. Parte literárias, parte teatrais, estes comentários desempenham a função de diários íntimos, ou talvez reproduzam a disposição de uma terapia freudiana, na qual se fala não com o terapeuta, mas consigo mesmo. O espectador, voyeur onisciente, seria o único a ter acesso a todos estes pensamentos. O elenco brinca muito bem com o texto interiorizado e com os embates a dois. Fernando Eiras, ator conhecido pelo tom comedido, se revela uma ótima escolha para o personagem que poderia se tornar caricatural nas mãos de intérpretes mais afoitos. A divulgação da série tem apresentado Eiras como protagonista, o que seria enganador: é difícil estabelecer qualquer hierarquia entre Romeu, a esposa Lúcia (Fábia Mirassos) e a filha Manu (Maria Léo Araruna). O medo de que o ator cisgênero se entregasse a mais uma prática do transfake, ou seja, a transexualidade percebida como fantasia, também desaparece quando se percebe que a identidade do psicanalista não está definida. Esta não é a história de um pai de família se descobrindo transexual, como na série Transparent (2014 - 2019). Há um contexto mais denso que privilegia às experimentações às definições. Fábia Mirassos encara com dignidade o papel da travesti carregada de transfobia, enquanto Maria Léo Araruna impregna cada cena com uma energia voraz, saboreando as palavras de suas falas. Os embates entre o trio são deliciosos em termos de jogo cênico.

Isso não significa que tudo são flores, claro. Alguns personagens importantes são subaproveitados na temporada inicial, a exemplo do filho Paulo (Danilo Maia) e de Beto (Gustavo Falcão). Este último se assemelha a um amigo imaginário de pai e filha, surgindo na casa quando lhe convém, servindo para dar a réplica e desaparecer quando os familiares não precisam mais dele. Talvez Beto carregue a frase-chave da série, repetida pela montagem: “As coisas não podem estar fora dos seus lugares”, o que simboliza o pânico, a fobia e o reacionarismo que atingem tanto a nossa sociedade real quanto esta família fictícia. Mesmo assim, ele se tornaria mais interessante com conflitos próprios. Rumo ao final, Renata Carvalho ganha uma cena potente, que a atriz agarra com unhas e dentes. Algumas cenas trazem uma decupagem curiosa, a exemplo da descoberta do travestimento do pai pelo filho, e a transformação súbita da mãe em cafetina da filha para fins de punição exemplar. Entretanto, estes são detalhes pequenos dentro de uma série muito bem concebida e produzida, com notável trabalho de som e uma montagem competente, capaz de perceber a gravidade do final de cada cena ao propor longas suspensões e cortes abruptos. Das imagens caleidoscópicas na abertura ao amargo happy ending, da violência do professor abusivo à delicadeza de um casal em crise, sentado em lados opostos da cama, Nós constitui uma das melhores séries brasileiras recentes na representação de gênero e sexualidade.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
8
Robledo Milani
6
MÉDIA
7

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