Crítica


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Sinopse

Jack, Harrison e Violet são três jovens autistas colegas de quarto. Eles enfrentam batalhas cotidianas para arrumar empregos, fazer novas amizades e expressar seu amor. A trinca apenas quer respeito e autonomia no mundo.

Crítica

Jack, Violet e Harrison são três jovens que dividem o mesmo apartamento. Mais do que isso, compartilham inquietações comuns a quem está na faixa dos vinte e poucos anos: estabilidade financeira e a busca por um bom emprego, encontrar um grande amor, identificar amizades verdadeiras e sair das sombras dos pais, se tornando, de fato, independentes. Há apenas um porém: eles possuem o transtorno do espectro do autismo. Se conhecem desde pequenos, e estão longe de serem estranhos uns aos outros. Mas estão juntos por uma decisão dos seus familiares responsáveis, não por uma questão de afinidade. Além disso, estão também sob os cuidados de uma assistente, Mandy. É com ela que podem contar em momentos de crise, insegurança, ou mera dificuldade de lidar com coisas que para muitos são não mais do que comuns, mas que, para eles, se mostram como grandes desafios. A partir desse cenário, Nosso Jeito de Ser estabelece diferentes possibilidades de abordagem, sem nunca ser condescendente ou paternalista, mas a partir de um prisma realista e honesto. Escolhas que podem soar arriscadas, mas que ao longo dos oito episódios dessa primeira temporada confirmam ser o maior dos (tantos) acertos reunidos.

O showrunner Jason Katims ganhou o Emmy por Friday Night Lights (2006-2011), mas suas produções mais recentes, como Almost Family (2019) e Away (2020) falharam em encontrar seu público ao abordarem temas específicos, como doação de esperma e corrida espacial. Nosso Jeito de Ser, por sua vez, foge dessa armadilha ao se focar nos personagens e não tanto nos acontecimentos entre eles. Ou como afirma o título original, As We See It, o que de fato importa é o modo como eles veem as coisas, e o impacto dessas em suas vidas. Se o namoro dará ou não certo, se a apresentação no escritório terá o efeito almejado ou se simplesmente conseguirão atravessar a rua em segurança é menos um fator de debate e mais um motivador de múltiplas implicações em suas histórias. O que cada uma dessas tarefas representa e o que estão dispostos – ou não – a fazer para alcançá-las termina por se mostrar mais interessante do que o cumprimento ou não de tal objetivos. Isso, em parte, se deve ao bem engendrado roteiro, hábil em conectar interesses com personalidades, mas também aos atores por trás dessas criações.

Eis aqui um dos méritos da produção: Rick Glassman, Sue Ann Pien e Albert Rutecki são, de fato, pessoas com autismo. Evidentemente, possuem distintos graus dessa condição, não só de um para outro, mas também em relação aos seus papeis. Com isso, imprimem uma inegável verdade à Jack, Violet e Harrison, respectivamente. Por outro lado, há um indisfarçável esquema a ser preenchido, como uma cartilha de intenções, distribuídas de forma equilibrada entre o trio. Se um conta apenas com o pai e a outra somente com o irmão, o terceiro será aquele com uma família completa por trás – e, justificando que quantidade não corresponde à qualidade, esse número maior não corresponde a um envolvimento mais significativo. Do mesmo modo, como se dão na presença de estranhos – em contrapartida com ambientes reconhecidos e pessoas familiares – também irão responder pela maior parte dos seus esforços de superação. Os resultados não decepcionam, por mais que as estruturas que os levem até estes sejam por demais formatadas a atingir um espaço comum.

Enquanto Rutecki é o novato, tanto Glassman quanto Ann Pien contam com experiências anteriores (ele, por exemplo, esteve no longa Fútil e Inútil, 2018, enquanto que ela pode ser vista na série Ballers, 2017). Essa bagagem prévia se reflete também no que agora tem em mãos. Harrison é o que possui o mais alto grau de autismo, e para ele tarefas aparentemente banais, como ir sozinho até a cafeteria da esquina, implica em barreiras quase intransponíveis. É também o de personalidade mais infantil. Portanto, adquire tamanho significado a amizade que desenvolve com o pequeno A.J. (Adan Carrillo). Qualquer espectador entende que ver um homem adulto se dizendo amigo de uma criança de dez anos pode causar estranheza, e a série não se exime dessa perspectiva. Por outro lado, há tanta sinceridade e excitação entre os dois, que poucos na audiência não se sentirão revoltados a cada questionamento a respeito do quão ingênua e sincera é a ligação entre eles. Mais uma vez, é a forma como essa relação é mostrada que irá justificar – e até mesmo estimular – essas esperadas reações.

Se mais adiante Harrison terá que lidar também com o abandono familiar por uma desculpa logística (os pais querem mudar de cidade, deixando-o para trás – não sem os cuidados financeiros que ele exige, ao menos), Jack terá que enfrentar outro tipo de urgência – e ainda mais grave: seu pai, participação emotiva do veterano Joe Mantegna, está com câncer. A maior preocupação desse, no entanto, nem é tanto em como lidar com a doença, mas o que será do filho quando se for. Conseguirá o rapaz se manter em um emprego, pagar suas contas ou ainda se apaixonar por alguém? A atração que aos poucos vai se verificando entre Glassman e a enfermeira vivida por Délé Ogundiran (Ray Donovan, 2013) é tão inesperada quanto singela, representando uma das maiores torcidas entre os que os acompanha. Motivação que se encontra também na luta empreendida por Violet, que sonha com um príncipe encantado, mas é a todo momento cerceada pelo próprio irmão, Van (um ótimo Chris Pang, de Podres de Ricos, 2018). Esse, pela cobrança que se impõe em cuidar dela, acaba por privá-la de algo tão especial – a perda da virgindade – ainda que munido pelas melhores intenções. Dilemas nada extraordinários, mas ainda assim, dotados de uma profundidade singular.

Por fim, mas não menos, é importante ressaltar a presença luminosa de Sosie Bacon. A atriz demonstrou forte controle emocional recentemente em sua participação na bem-sucedida minissérie Mare of Easttown (2021), e aqui ganha a oportunidade de lidar com a construção de um tipo rico, dividido entre as ambições pessoais e a abnegação de seus interesses pelo bem daqueles que tanto dela dependem. As fraquezas que eventualmente demonstra, a inconstância de suas decisões e (spoiler alert!) certos envolvimentos equivocados são fundamentais para tornar sua personagem mais humana, e por isso mesmo, próxima do espectador. É ela o elo de ligação com realidades tão distantes da maioria daqueles os observam do lado de cá da tela, e seu carisma proporciona uma excelente ponte de conexão. Nosso Jeito de Ser é absurdamente simples, mas nunca simplória. Por isso mesmo, se mostra discreta e quase desapercebida, mas capaz de uma entrega que vai além de qualquer leitura apressada ou superficial.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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