Crítica


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Sinopse

Recheado com toneladas de drogas ilícitas, um submarino atravessa o Oceano Atlântico. Sua tripulação é composta de três homens que comem o pão que o diabo amassou para entregar a encomenda, sobreviver e receber o pagamento.

Crítica

Baseada em fatos, a minissérie Operação Maré Negra é um projeto ambicioso. Não tanto por seu tamanho como produção (deslocamentos entre Espanha, Portugal e Brasil), mas pela tentativa de contar muitas histórias e construir diversos painéis em apenas quatro episódios com cerca de 45 minutos. A superficialidade que caracteriza o programa é fruto dessa falta de recortes mais específicos, de uma vontade de documentar a trama incrível a partir de todos os vieses possíveis. Em resumo, se trata da ficcionalização do caso acontecido em 2019, quando um pescador e ex-pugilista espanhol comandou um semissubmersível que percorreu mais de 6000 quilômetros pelo oceano Atlântico contrabandeando toneladas de cocaína. E cada episódio se detém especificamente num aspecto desse panorama com inúmeras implicações. No primeiro, temos a apresentação clássica de protagonista. Nando (Álex González) é um jovem morador da cidade de Vigo, no litoral espanhol, e ajuda o avô num negócio já não tão lucrativo de pesca. Ele também não tem muitos horizontes em sua outra paixão, o boxe. Embora seja campeão nacional amador, Nando não tem tantas perspectivas de se tornar profissional e rechaça o convite do treinador para virar professor. Fica bastante claro que Nando é colocado na posição do personagem encurralado, do animal acuado que fará bobagens se isso significar uma alternativa.

Portanto, Operação Maré Negra opta por situar o seu protagonista como alguém que não tinha um leque de possibilidades à frente. Aceitar o convite da prima e do tio mafiosos e ganhar milhares de euros em questão de minutos ou voltar para uma vida repleta de restrições e com um futuro incerto? O roteiro a cargo de Patxi Amezcua e Natxo López opta por fazer do primeiro episódio uma grande (e batida) jornada de justificativa. Espreme em 45 minutos a apresentação de Nando, o desenho da relação com o avô (rígido e afetuoso ao mesmo tempo), a vitória nos ringues seguida imediatamente da briga com o treinador, a discussão com os amigos de longa data, a ida da Portugal para encontrar os parentes bandidos e ainda o contato com o amigo de infância que vive sob o guarda-chuva da contravenção. Ufa. Sim, são muitas coisas acontecendo em pouquíssimo tempo. E o principal efeito colateral dessa opção é a superficialidade. Não há tempo para as coisas acontecerem e/ou amadurecerem adequadamente. Portanto, o espectador fica meio sem ter no que se apegar. O que é o principal ali: o drama humano do homem supostamente sem saídas? A investigação da polícia portuguesa em curso? O subtexto da marginalidade como caminho difícil que seduz por mostrar-se supostamente fácil? É difícil responder à pergunta, justamente porque os idealizadores tentam um pouco de tudo.

Passada a correria do primeiro episódio, logo perceberemos que não será tão diferente nos três subsequentes, o que deixa exposta a natureza esquemática de Operação Maré Negra. Cada parte da minissérie possui um eixo temático a partir do qual os idealizadores colocam vários elementos espremidos num curto espaço de tempo para garantir que “a história toda” seja contada, ao todo, em cerca de três horas. A segunda parte possui um teor funcionalista, pois mostra Nando e Sergio (Nuno Lopes) sendo engambelados para aceitar a missão quase suicida – e essa estratégia do chefão é bem previsível –, viajando para a selva amazônica brasileira a fim de pegar o semissubmersível e as toneladas de cocaína. É nessa parte que entram em cena Bruno Gagliasso e Leandro Firmino. O primeiro como o chefão do esquema, o típico personagem “eu é que mando nessa joça toda e sou perigoso/imprevisível”. O segundo aparece como um subalterno cumprindo ordens, até ali somente isso. E o teor funcionalista do episódio dois é porque ele existe para explicar o funcionamento do intrincado esquema de tráfico. Como Nando e Sérgio são forasteiros, eles são constantemente municiados de informações sobre de onde vem a droga, como a embarcação foi feita, quem teve a ideia da viagem, etc. Como suporte, além-mar, a polícia Portuguesa completa lacunas ao desvendar pistas. Um esquema de roteiro burocrático.

Operação Maré Negra se mantém fiel a essa decisão de colocar em cada episódio um tema (ou uma situação) central e entupi-lo de informações adicionais que poderiam render melhor. No terceiro, os idealizadores condensam toda a viagem marítima que durou quase um mês. O panorama é o seguinte: três personagens confinados numa embarcação de construção praticamente caseira – chamada se semissubmersível pela capacidade limitada de submersão –, com perfis psicológicos e missões diferentes, diante de inúmeras adversidades. Novamente, a falta de tempo para as coisas amadurecerem é fundamental para a sensação de que nada ali tem muito peso dramático, de que os conflitos são circunstanciais porque logo têm de dar espaço a outras coisas que vão acontecer também rapidamente e sem espaço adicional para serem bem desenvolvidas. Esquematicamente, temos todo o itinerário que esperamos desse tipo de cenário: diversas panes mecânicas seguidas de pânico, brigas entre os tripulantes por coisas grandes (a responsabilidade, a vida, a dignidade) e coisas aparentemente pequenas (comida, a abertura de uma escotilha para renovar o ar, quem dorme primeiro). Tudo acontece nesse intervalo de 45 minutos. Não bastasse a apressada síntese, ela é feita a partir das obviedades. O personagem de Leandro Firmino é um dos embarcados, deles o sujeito boa praça que utiliza palavrão como vírgula e ponto final, mas que é uma espécie de intermediário entre o protagonista e o capanga.

Os idealizadores de Operação Maré Negra não conseguem imprimir tensão nessa jornada quase impossível repleta de componentes incendiários. No oceano, a posse da arma (sinônimo de poder), as conspirações entre o trio, as intempéries da travessia, a possibilidade de um rastreio pela polícia, a dependência da voz misteriosa que dita as regras do outro lado do telefone por satélite, tudo isso é apresentado displicentemente, como se o roteiro estivesse cumprindo metas. Aliás, esta é a sensação que prevalece: a de que os roteiristas Patxi Amezcua e Natxo López fazem o que podem para cumprir a meta de não se esquecerem de algo, como se estivessem documentando um fato jornalisticamente e não o abordando como ficção. Sendo assim, o quarto episódio é o que mostra como os personagens lidam com o cerco policial, de que modo chefões encaram a iminência de perder milhões de dólares e como os detetives ficam mais próximos de um êxito improvável. Tudo sem foco definido, nem bem tornando aquilo uma jornada de gato e rato, enfatizando a tragédia do protagonista, assinalando a resposta do avô que avisou seu neto de antemão sobre os riscos implicados em cruzar a linha rumo à contravenção ou sequer criando um painel consistente sobre a atividade narcotraficante. Ao tentar valorizar tudo em pouco tempo, a minissérie acaba não valorizando efetivamente nada. Acompanhamos a trama mais pela curiosidade dos fatos do que pelo impacto que seus componentes possuem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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