Crítica


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Sinopse

O Brasil está grudado na telinha conferindo um reality show de ampla audiência. Enquanto isso, um ataque zumbi devasta rapidamente o Rio de Janeiro. Os participantes do programa logo se depararão com essa realidade terrível.

Crítica

A julgar pela primeira temporada desta série brasileira, o ser humano é um animal deplorável. Podemos ser resumidos a seres sanguinários, egoístas, individualistas, egocêntricos. Os políticos são perversos, os policiais são selvagens, as mulheres ricas são escravocratas, os diretores de empresas são tirânicos, os bandidos são ditadores em potencial. As exceções constituem justamente isso, exceções - trata-se de pessoas que não toleram a violência nem mesmo em caso de legítima defesa, nem mesmo quando estão sendo estupradas. Neste projeto, existem anjos e demônios, sendo dois ou três anjos para dezenas (ou centenas, ou milhares) de demônios. Reality Z (2020) demonstra uma fascinação pelo espetáculo da perversidade. Quem movimenta a trama não são os mocinhos, facilmente descartáveis, e sim os vilões: quando o insuportável diretor de um programa de televisão (Guilherme Weber) se torna desnecessário à premissa, entra em cena outra figura ainda mais detestável (o militar interpretado por Pierre Baitelli), para ser então superado por uma mocinha intragável (interpretada por Julia Ianina), então ultrapassada pelo deputado Levi (Emílio de Mello), que mede forças com o matador Peixe (Thelmo Fernandes), e assim por diante. Como num videogame de fases, pulamos de vilão em vilão.

Esta caricatura da maldade humana poderia ser ridicularizada em formato autoparódico. Todos os elementos da premissa convergem para a comédia: a presença de um reality show ainda mais sensacionalista que a média, um apocalipse zumbi que eclode abruptamente em pleno período eleitoral, uma equipe de produção repleta de intrigas e triângulos amorosos. A equipe de marketing da Netflix parece reconhecer o caráter risível da obra quando valoriza os nomes de Sabrina Sato e Jesus Luz enquanto atores de destaque, ainda que ambos tenham participações pequenas. Havia espaço para satirizar a artificialidade de reality shows, a relação entre fãs de televisão e os mortos-vivos lá fora, ou ainda entre a semelhança em morto-vivo e o alienado político. Os filmes de zumbi em geral, e as comédias de zumbi em particular, fornecem farto material para releituras metafóricas de configurações sociais. No entanto, a série evita explorar este potencial. Não há presidentes, governadores, líderes do exército, líderes de manifestantes populares. Concentramo-nos em casos excepcionais de pequenos representantes simplificados: um único deputado corrupto até os ossos, o cabo cocainômano e violento, a garota negra da favela, o sujeito musculoso e acerebrado, a garota musculosa e acerebrada. Ao apostar em caricaturas universalizantes, o roteiro se afasta da realidade específica do Brasil atual.

Além disso, Reality Z não percebe o abismo separando a ridicularização da crítica social. Sim, o reality show fictício “Olimpo”, apresentado por Sabrina Sato, é ridículo, assim como os personagens lá dentro. A busca do produtor de televisão por closes exploradores, e a decisão do deputado em abandonar dois civis no meio do apocalipse são ridículas. No entanto, a série nas a critica. Não existe alternativa a essas condutas, inserção das mesmas dentro de um contexto mais amplo, tampouco uma evolução dos personagens detestáveis. A loira burra será burra até o fim, o produtor misógino será misógino até o fim. Pobres atores, especialmente os atores muito bons, como Carla Ribas e João Pedro Zappa, presos a tipos unilaterais. A talentosa Julia Ianina se limita à cristalização pavorosa da burguesa megera, andando de nariz empinado e lixando as unhas enquanto zumbis atacam a emissora de televisão. Emílio de Mello encarna o deputado tão asqueroso que, diante da visão de pessoas morrendo, decide perguntar em quem votaram. Embora acredite propor uma crítica social profunda, o projeto se assemelha à constatação conformista da miséria, do tipo que justifica o desprezo pelo coletivo e pela política sob pretexto de que todas as pessoas são igualmente ruins. A propósito, esse tipo de pensamento contribuiu a eleger alguns aspirantes a ditadores no Brasil.

Ao mesmo tempo, a série acredita fornecer um ponto de vista progressista ao incluir personagens trans, negros, bissexuais e gays. Mero engano: com exceção de Teresa (Luellem de Castro), as minorias sociais são as primeiras a desaparecerem, para que o elenco branco, heterossexual e cisgênero continue comandando a narrativa. Além disso, a suposta bissexualidade se converte em fetiche do lesbianismo: há diversas cenas de mulheres se beijando, mesmo em momentos inexplicáveis (o “Me morde!” ao final, a tensão homoerótica envolvendo uma mulher morrendo), enquanto dois homens gays jamais se encostam. Em paralelo, a bela participante do reality show (Natália Rosa) é retratada completamente nua numa cena de banho deslocada da narrativa, pelo simples prazer da câmera. As demais mulheres são loiras burras, do tipo que não consegue compreender uma frase simples (Hanna Romanazzi), ou loiras hiperssexualizadas (Priscila Assum), buscando transar com absolutamente qualquer homem à sua frente, para depois se esfregar numa coluna, dizendo: “Você viu a grossura dessa pilastra?”. A responsabilidade não recai sobre os ombros das atrizes, dirigidas para atuarem desta maneira, e sim sobre a direção, produção e roteiro. Esta poderia ser um belo ataque a tais estereótipos, porém, relembramos, a ridicularização não basta para constituir uma crítica social.

Os diálogos, aliás, constituem pérolas do que não se fazer num roteiro. “Guarda um pedaço dela pra mim”, afirma um galã sobre a mocinha do reality programa televisivo. “Eles são burros, mas a gente não é!”, grita a heroína ao final de um episódio, como se tivesse disparado uma frase encorajadora. “Vai, Nina! Vai e vive!”, grita a loira burra, ao empurrar a heroína à corja de zumbis. “O que é isso, Mulher Maravilha?”, pergunta uma personagem, em plena situação desesperadora, ao presenciar a colega segurando uma corda. “Vocês estão sendo filmados!”, declara outro personagem, fazendo piada em novo instante de descontrole. “São mais de 15 metros até o fundo!”, protesta o deputado quanto à possibilidade de descer por um alçapão, sem ter a menor condição de deduzir tal profundidade apenas olhando para a portinha. O roteiro está repleto de frases de efeito, “lacradoras”, como se diria hoje, incapazes de perceberem o quão artificiais realmente são. Nenhuma pessoa real se comunica como estas figuras que declamam ao invés de falarem, discursam ao invés de conversarem. Os melhores atores encontram meios de contornar o teor patético dos diálogos, mas a parte menos experiente do elenco sucumbe à tentação de estufar o peito, erguer o queixo e ar-ti-cu-lar as frases de impacto com a ferocidade de um líder popular. O resultado, em diversos casos, beira o constrangimento.

Por incrível que pareça, os fatores listados acima não constituem os maiores problemas de Reality Z. O principal elemento de desconforto se encontra na sobrecarga de efeitos digitais. As melhores tramas de zumbis contemporâneas, seja no cinema ou na televisão, apostam em efeitos práticos e truques o mais analógico possíveis de modo a resgatar o aspecto corporal, carnal e naturalista que nos permita acreditar no mundo retratado. Afinal, nossa capacidade de identificação com este universo depende da verossimilhança. Ora, o resultado é gravemente prejudicado pela pós-produção. Era esperado que, numa trama sobre zumbis atacando o Rio de Janeiro, uma dose de efeitos visuais fosse aplicada ao material bruto, porém o resultado vai muito além das expectativas. Os episódios estão repletos de incêndios virtuais, fumaças virtuais, ferimentos virtuais, projeções em chroma key e mudanças grosseiras de cor. As inúmeras vistas aéreas do Rio de Janeiro são tão amareladas e esverdeadas que remetem a algum game explorando a cidade de modo simbólico. As cenas externas possuem forte tom sépia, enquanto dentro do estúdio, os corredores possuem um azul escuro e vermelho escuro inexplicáveis para o cenário em questão. Mesmo um supermercado é mergulhado em azul-neon, iluminando produtos com embalagens grosseiramente falsas.

Ao mesmo tempo, a direção de fotografia acredita no falso dinamismo das câmeras tremidas, nos zumbis rápidos cujo ataque é alongado pela câmera lenta e no péssimo recurso digital de controle do obturador, sugerindo um efeito “borrado”. O projeto depende bastante dos cenários do estúdio e do Olimpo, mas fica difícil acreditar nos corredores com sangue em excesso, ou nos acessos de entrada e saída do Olimpo. As personagens femininas surgem com novas roupas impecáveis e desfilam pelo estúdio em plena pandemia; os personagens nordestinos possuem olheiras profundas, dentes escurecidos e uma peixeira a tiracolo (casos em que a caricatura resvala no preconceito); os telefones celulares, importantíssimos na trama, funcionam o tempo inteiro, com bateria infinita. O roteiro está repleto de personagens inacreditáveis em cenários falsos, adotando atitudes estúpidas ou improváveis. Alguns exemplos: a crença dos participantes que a mulher coberta de sangue e com uma faca na mão seria uma “nova participante”, a agilidade de uma personagem de pegar uma arma no chão e ferir o policial de revólver em punho, a festa barulhenta que não atrai zumbis nem possui consequência narrativa, a personagem que se afasta do grupo sem motivo, apenas para ser atacada pelos corredores, a sequência vergonhosa de arrotos e diarreia; a contaminação lentíssima de uma personagem para prolongar a tensão narrativa.

Diante de tantos absurdos (mesmo para uma série sobre zumbis), o resultado surpreende pela falta de humor e de leveza. As piadas esparsas têm o efeito prejudicado pela condução séria demais. Há um problema de tom na condução dos diretores Cláudio Torres e Rodrigo Monte: ou se assume o viés crítico e político, aproximando os personagens de figuras mais conhecidas da política e da polícia brasileiras, e trazendo situações análogas ao contexto especificamente nacional; ou se investe na paródia dos códigos, ressaltando o quão improváveis seriam dentro daquele contexto. Ambas opções seriam igualmente divertidas, porém Reality Z se conduz com a seriedade de quem nunca percebe os corredores com cara de tapumes, iluminados pelo azul-neon de uma casa noturna. A aparência de escape room poderia ser utilizada a favor da trama, sublinhando o aspecto teatral. A particularidade dos tempos bolsonaristas, reduzida a uma única frase perdida (“Até que enfim um paneleiro que não é coxinha!”) teria forte potencial metafórico: quem são os zumbis em pleno 2020? Entretanto, o projeto não possui a coragem de assumir seu viés crítico, nem mesmo seu teor patético (o que não constituiria, em si, um demérito). Ele não cutuca as feridas da direita armamentisma, por temer incomodá-la, nem da esquerda idealista, por medo de perder este público. A série sequer possui a coragem de utilizar o termo “zumbi”, curiosamente escondida da trama, e substituído por eufemismos variados. Resta um projeto superficial, mal dirigido e asséptico, que ainda desperdiça as canções de Caetano Veloso, Novos Mutantes e Secos e Molhados diante de um festival tolo de efeitos computadorizados.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
2
Robledo Milani
3
MÉDIA
2.5