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Sinopse

Uma noite de festa numa casa na região oeste de Londres contém, além de relacionamentos entrelaçados, um pano de fundo repleto de violência.

Crítica

Quando Steve McQueen se debruçou sobre a ideia de uma antologia de filmes que propusessem um olhar sobre a condição negra durante os anos 1970 em Londres, uma cidade cosmopolita, mas ainda dona de comportamentos arraigados e conservadores, era natural que muitas das histórias que pensasse em contar fossem a respeito de injustiças e episódios de violência que acabaram sendo determinantes, tanto pelo modo como foram gerados, mas também pelas repercussões que originaram, para as mudanças que vieram a se concretizar somente nas décadas seguintes. Tanto é que Mangrove (2020), o capítulo de estreia de Small Axe, é exatamente isso: um caso travado nas ruas que resultou em um longo enfrentamento nos tribunais. Por outro lado, é com imensa satisfação que o espectador se depara com Lovers Rock, o segundo da série, tanto por ser hábil em manter esse mesmo clima tenso e de liberdade cerceada que a população negra enfrentava na capital inglesa na ocasião, como também por oferecer uma outra abordagem – e mostrar que, em meio a tantos descasos e confrontos, ainda havia resistência e ânimo suficiente para ser investido em algumas horas de diversão.

Segundo o diretor, Lovers Rock foi inspirado nas histórias que ouvia, quando criança, sendo contadas por uma de suas tias. Ele próprio filho dessa comunidade, via seguidamente as garotas mais velhas da vizinhança escapulirem pelas janelas e portas dos fundos assim que a noite caísse, prontas para uma boa música, uma conquista ocasional e qualquer momento de leveza e descontração que as conseguisse levar para um outro mundo, longe da opressão e preconceito com o qual estavam acostumados no seu dia a dia. Quem assume esse papel por aqui é Martha (a revelação Amarah-Jae St. Aubyn), que escapa de casa com destino certo junto com o primeiro vislumbre da lua: encontrar uma das suas melhores amigas para que, juntas, possam ir a uma festa não muito longe. Mesmo assim, enfrentam transporte público e uma caminhada por ruas não muito iluminadas, o que não deixam de representar um risco. Mesmo assim, acreditam que há mais o que ganhar do que o que possam perder nessa saída.

Como se percebe pela descrição acima, esse sentimento de que o perigo possa aparecer na virada da próxima esquina é constante por toda a narrativa – que dura aproximadamente 70 minutos. Elas podem ser agredidas no ônibus, um grupo de arruaceiros pode implicar no elas ou mesmo um desencontro pode gerar complicações indesejadas. Ao chegarem no endereço que procuram, a tensão não diminui: há ainda o fato de se ter como protagonistas mulheres, que assim como qualquer outra como elas, independente da cor de suas peles, também precisam lidar com namorados ciumentos, investidas indesejadas e galanteadores que não sabem parar mesmo diante de um “não” incisivo. É para ser uma comemoração, o aniversário de uma, a proximidade de outras, o alívio de tantas. Mesmo assim, só é possível relaxar até certo ponto: a lembrança de onde estão, de onde vieram e o que lhes pode acontecer é constante e não oferece muitos instantes de folga.

Mesmo assim – ou apesar de tudo isso – aqui estão garotas que querem se divertir, dançar e beijar. Umas irão se realizar na pista de dança – e a passagem da canção “Silly Games”, com praticamente todo o elenco entoando a melodia à capella, é fundamental para se alcançar o clima esperado – enquanto que outras só estarão com a cabeça voltada para o par romântico que irá realizar suas fantasias, nem que seja por poucas horas – ou mais. Nesse mesmo ambiente, questões urgentes, como relacionamento entre famílias, as possibilidades de futuro que estão reservadas para esses jovens, a necessidade de se moverem, a despeito de tudo ao redor mandar que sigam caladas e obedientes, irão ganhar maior ou menor espaço, dependendo do ritmo de cada troca, dos olhares que serão evitados ou que alcançarão o coração esperado, ou mesmo da rebeldia inconsequente da qual ninguém escapa. Nem mesmo Steve McQueen.

Apontado como um dos melhores filmes – apesar de ser apresentado como episódio de uma série – de 2020 pelo ex-presidente Barack Obama, Lovers Rock é o testemunho de uma época que gerou sofrimento, mas que, por outro lado, também foi necessária para um mundo novo que estava sendo criado. É o registro de uma saudade de quem não viveu tais lembranças, mas que, mesmo assim, sente a nostalgia de um abraço apertado, um beijo apaixonado ou mesmo uma pista de dança cheia que se move na mesma direção. Sem investir na alienação, mas oferecendo o respiro exigido para que se possa seguir em frente, é tanto um alento quanto um sinal de alerta: afinal, há pelo que lutar, pelo que seguir tendo esperança, pelo que viver, mesmo que muitos digam o contrário. Pode ser só uma noite, uma casa, uma música, mas é o que faz toda a diferença.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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