Crítica


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Sinopse

Duas vidas atormentadas pelo passado se encontram. De um lado, o cético Dr. Evandro, cirurgião-chefe da equipe médica de um hospital público. Do outro, a religiosa Dra. Carolina, cirurgiã vascular que busca na fé o antídoto contra a miséria que enfrenta no dia a dia. Parceiros de trabalho, têm em comum o desejo de salvar vidas. E precisam encontrar o equilíbrio entre as dificuldades do ofício e os conflitos íntimos para enfrentar a caótica rotina de uma emergência no subúrbio do Rio de Janeiro.

Crítica

A situação caótica do serviço público de saúde no Brasil não é nenhuma novidade. Por mais que o SUS precise ser defendido e preservado, há muito no seu entorno que também necessitaria uma urgente atualização, tanto em transformar em prioridade esse tipo de atendimento, como também a partir do entendimento dos próprios governantes, que ao invés de investirem no setor, cada vez mais diminuem as verbas destinadas. É sobre essa realidade que Jorge Furtado e Claudio Torres, a partir de uma ideia de Mini Kerti, se debruçam na série Sob Pressão, atualmente já na sua quarta temporada. Porém, lá em 2017, quando essa primeira leva de episódios estreou – e não em um canal fechado ou numa plataforma de streaming, mas em uma emissora de sinal aberto e de maior alcance nacional – a aposta era, na melhor das hipóteses, duvidosa. Porém, o que se percebeu foi que, com talento e determinação, ainda havia muito a ser dito a respeito. Justamente o que é possível encontrar ao longo desses nove capítulos iniciais.

Acontece que o programa, por mais original que seja em sua abordagem, é baseado no longa Sob Pressão (2016), que até alcançou algum reconhecimento crítico – foi indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e premiado no Festival do Rio e pela Associação Paulista de Críticos de Arte – mas passou em brancas nuvens pelo circuito comercial exibidor. Ou seja, a ideia é boa, de resultado comprovado no exterior – Hollywood adora um drama médico como nenhum outro lugar – mas parecia não funcionar com o efeito esperando diante do contexto nacional. Pois bem, Furtado e Torres, juntos a Renato Fagundes (Magnífica 70, 2015) e Luiz Noronha (Vai Que Cola: O Filme, 2015), mais um time de roteiristas consagrados, como Lucas Paraizo, Marcio Alemão (Carrossel: O Filme, 2015), Antonio Prata (O Negócio, 2013), Márcio Maranhão e Márcio Alem, se uniram para construir o universo do dr. Evandro Moreira (Julio Andrade) e da dra. Carolina Alencar (Marjorie Estiano) à frente de um deficiente hospital no subúrbio do Rio de Janeiro. E assim fizeram.

Se no filme figuras como a administradora Ana Lúcia (Andréa Beltrão) e outros membros da equipe médica, como o dr. Paulo (Ícaro Silva), tinham fundamental importância para a trama, na versão seriada muitos destes foram descartados. Evandro e Carolina continuam lidando diariamente com a precariedade do sistema para salvar vidas, e ao lado deles segue o dr. Samuel (Stepan Nercessian), como diretor do hospital. Mas tirando outras exceções – como o capitão Botelho (Thelmo Fernandes), que intervém para impor ordem quando o caos ameaça reinar – a maioria do elenco foi renovada. São essenciais para a multiplicidade de dramas os doutores Amir (Orã Figueiredo, responsável pelos poucos alívios cômicos com suas duas, ou até três, namoradas simultâneas) e Rafael (Tatsu Carvalho, cuja relevância se mostra no final da temporada). E se o doutor Décio (Bruno Garcia) tem presença mais discreta – é um personagem que será melhor desenvolvido nos anos seguintes – são os dramas pontuais de cada episódio que se encarregarão de conduzir a história.

Esse primeiro ano de Sob Pressão tem uma assumida função social, além do mero entretenimento. Cada um dos seus nove capítulos abraça uma causa específica, uma bandeira que será explorada através de componentes fictícios, mas fortemente relacionados com os debates em pauta pela população brasileira. Da criança da vila que serve para transporte de drogas – a bala que engoliu não é bem um doce – à automutilação como forma de expiar traumas do passado, da violência doméstica contra mulheres ao contágio do HIV entre casais heterossexuais, da mãe que se recusa a permitir que desliguem os aparelhos que mantêm vivo o filho diagnosticado com morte cerebral – e, com isso, pode impedir que seus órgãos sirvam para transplante – ou a fé que impede até mesmo que uma bala perdida encontre seu destino, há muito em jogo em cada um dos enredos abordados. A maneira como série se compromete com cada uma dessas campanhas passa ao largo do discurso panfletário, a partir de uma narrativa imbuída de emoção e consistência na forma como se apresenta.

Mas o que liga, de fato, o espectador ao universo de Sob Pressão são os eventos diretamente relacionados à Evandro e Carolina. A série começa com um caso traumático: Madalena (Natália Lage), a esposa de Evandro, sofre um acidente de carro e chega ao hospital correndo risco de vida. Apenas ele está presente, e mesmo contrariando as indicações, assume a operação para salvá-la – algo que acaba não acontecendo. Essa culpa o perseguirá pelos episódios seguintes, ainda mais após algumas revelações: a mulher estava grávida, os dois estavam se separando, ela não sabia se o filho era do marido e, por fim, sua sogra (vivida pela excelente Carla Ribas) decide denunciá-lo ao Conselho de Medicina, alegando que teria sido culpa dele a morte da filha. Ao mesmo tempo em que lida com tudo isso, há a evidente atração que surge pela colega de trabalho. Mas essa também tem seus perrengues com os quais lidar, como um flerte de ocasião (Pedro Lamin, de O Homem que Parou o Tempo, 2018) que passa a chantageá-la com um vídeo sexual, ou ainda pior: a volta do pai (Luis Melo, sempre competente), que teria abusado dela na infância, mas agora alega ter se convertido à religião e estaria em busca de uma segunda chance.

Como se vê, não é com pouca coisa que os protagonistas precisam lidar. Por mais que Sob Pressão tenha uma estrutura do “caso da semana”, há também elementos suficientes para serem desenvolvidos ao longo de toda a temporada, ganhando – e justificando – o investimento necessário para que sejam assimilados pelos espectadores. De nada isso adiantaria, é claro, não fossem as atuações superlativas de Julio Andrade, excepcional como o médico dedicado e intenso em sua atividade, que vive do que faz e naquilo mergulha de corpo e alma, e de Marjorie Estiano, que surge como um contraponto tanto emocional como nos dilemas mais racionais, alternando com equilíbrio o lado pessoal com o aspecto público da sua personagem. Pelo que mostra em cena como o que emite nas entrelinhas, esse se comprova como um dos programas mais realistas e urgentes da televisão nacional nos últimos anos, visto o muito que coloca em discussão, mas também pela excelência técnica com a qual se abastece tanto na frente como atrás das câmeras.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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