Crítica


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Sinopse

Romântica e idealista, a jovem Catarina chega à Rússia para casar-se com Pedro, o imperador temperamental. Ao encontro desse enlace arranjado, ela se depara com um mundo perigoso. Para modifica-lo, Catarina precisa matar o marido, bater de frente com a Igreja, despistar os militares e angariar a simpatia dos nobres.

Crítica

Talvez o espectador fique com uma curiosa sensação de déjà-vu assistindo ao ótimo primeiro episódio de The Great. Travellings por corredores repletos de uma nobreza pronta a ser ridicularizada; um império conduzido por intrigas palacianas bem menos grandiosas que as eternizadas pelo bardo William Shakespeare; pessoas supostamente proeminentes cometendo imbecilidades simplesmente porque podem; uma perspectiva venenosa diante desse mundo de ignorantes pretensamente escolhidos por Deus; e Nicholas Hoult entre os destaques do elenco. Esses são elementos caros a A Favorita (2018), filme de Yorgos Lanthimos que deu o Oscar de Melhor Atriz a Olivia Colman. Não por acaso, o roteiro do longa foi escrito por Tony McNamara, o idealizador dessa série protagonizada por Catarina, a Grande (Elle Fanning). O programa é baseado na peça por ele assinada, encenada originalmente no Sydney Theatre Company. Há semelhanças de tom e estilo.

Mas, existem diferenças bem sensíveis. O filme de Lanthimos se vale parcimoniosamente do humor, muitas vezes o utilizando em meio a comentários mordazes para dirimir a fleuma dos protocolos fidalgos. Em The Great, o diagnóstico da aristocracia russa é também pouco lisonjeiro, porém sua natureza cômica é mais esculachada. Já na primeira cena, fica evidente que Catarina, membro de um clã polonês falido, precisará rapidamente deixar para trás a sua ingenuidade se quiser ir além de ser um adereço do rei Pedro (Nicholas Hoult). Confrontada por uma amiga enquanto anda de balanço – numa evidente demarcação da infantilidade que logo igualmente deverá ser obliterada – ela diz que não havia percebido a ruína familiar porque a eles era permitido comer morangos diariamente. Exemplos dessa inocência não faltam, sendo o melhor deles a descrição do ato sexual. A incredulidade imediata da serviçal sinaliza essa dissonância entre expectativas e realidades. A grosseira do entorno vai gradativamente se impondo, tornando essencial uma adaptação veloz.

Nesse primeiro episódio de The Great, o diretor Matt Shakman valoriza o caráter direto da abordagem de Tony McNamara, potencializando a pronta compreensão das peças dessa farsa agridoce e valorizando a dicotomia entre a barbárie e as expectativas da estrangeira. Em um pouco mais de 50 minutos, num incisivo exercício de síntese, são delineadas personalidades e configurações sociais encaradas pela novata. Instigante é a possibilidade da discussão política a partir da disputa de gênero. As mulheres do reino russo são restritas a posições frívolas e subalternas, rotineiramente alimentando-se de fofocas e platitudes enquanto os homens gozam dos direitos, inclusive, de serem impunemente irresponsáveis e até desumanos. Nicholas Hoult vive um monarca que simboliza bem esse falocentrismo e egocentrismo de classe que não encontram resistência, por isso perpetuando opressões e abismos. O texto de McNamara tempera esse escracho com algumas sutilezas.

A deliberada falta de compromisso histórico confere a Elle Fanning liberdade para transitar, já no episódio inaugural, entre a puerilidade da jovem que deseja constituir família e a gana da mulher debilitada pela noção da incivilidade do marido, para dizer o mínimo. Catarina propõe uma visão nova, guiada pelo conhecimento, assim potencialmente revolucionária, reivindicando um papel distinto do subserviente ao qual foi designada, para isso encarando instituições enferrujadas. Como sabemos previamente, foi a monarca quem conduziu a Rússia pelas raias do modernismo, inovando ao ponto de transformar o país numa grande potência europeia no século 18. Entretanto, não é a ciência do que acontecerá a responsável por apontar caminhos auspiciosos à sequência de The Great, mas justamente a pegada que mistura humor, comentário social e uma deliciosa infidelidade aos fatos, que pode ser entendida como liberdade poética para sublinhar o que parece essencial.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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