The Handmaid’s Tale :: T01
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Bruce Miller
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Reed Morano, Mike Barker, Kate Dennis, Floria Sigismondi, Kari Skogland
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The Handmaid's Tale
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2017
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EUA
Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
Realidades distópicas lançadas há décadas na literatura são quase um prenúncio dos dias atuais. Com uma sociedade inclinada a voltar para a Era das Trevas, George Orwell e Aldous Huxley, com suas respectivas obras 1984 e Admirável Mundo Novo, já lançavam ideias como o Big Brother (que vai muito além do programa televisivo global). Pois O Conto da Aia, de Margaret Atwood, lançado nos anos 1980, é um prenúncio do fundamentalismo religioso e do machismo que proliferam nas ruas do mundo todo. Ao mesmo tempo em que há abertura maior para o feminismo e lutas de minorias como negros e homossexuais, ainda são os homens, brancos e heterossexuais, que ditam a voz no mundo. E na espetacular The Handmaid’s Tale, que adapta a obra de Atwood, eles chegam ao extremo.
Após um golpe de Estado nos EUA, a República do Gilead emerge e toma conta de forma assustadora. A taxa de infertilidade é cada vez mais alta nesse mundo. Quem coordena a situação, é claro, são os homens, os comandantes. A mulher é apenas um adereço, um anexo. As inférteis são suas esposas. As que podem ter filhos e tentaram fugir se tornam as aias do título original. Servem como procriadoras. Sua função é transar (ou melhor, ser estuprada) em todo o período fértil com o chefe de sua casa (na chamada “Cerimônia”), inclusive com a presença da esposa, para tentar a sorte de engravidar. Neste contexto todo, a trama gira em torno de June (Elisabeth Moss). Quer dizer, Offred, já que as aias são nomeadas de acordo com o local em que vivem. Não à toa a construção do nome “of + nome do comandante”, como se fossem suas propriedades.
Em meio à confusão da tomada de poder, Offred se perdeu do marido e da filha pequena. Acabou capturada e, ao longo dos oito episódios desta primeira temporada, acompanhamos seu processo de “reeducação”. A fala é praticamente proibida. Não se pode falar em sexo, nem usar palavrões. A lavagem cerebral é extrema. Não que June/Offred sofra os efeitos de forma imediata, como muitas das que estão na mesma situação. No dia a dia, elas só devem sair para ir ao mercado fazer compras. Mesmo assim, somente quando acompanhadas de outra aia. Assim, começa uma amizade com Ofglen (Alexis Bledel), que revela que está envolvida em uma organização que pretende derrubar a República de Gilead. O que parece animar June/Offred, aos poucos se torna ainda mais complicado quando presencia o que acontece a quem se revolta contra o regime. Nisso, o texto se apropria muito bem de uma ideia clichê e consegue subvertê-la: dentro de um contexto machista, que melhor arma para a mulher do que a sedução?
Assim, a protagonista começa um jogo de gato e rato com Fred (Joseph Fiennes), o comandante da casa a quem ela consegue despertar uma certa afeição que vai além da proposta inicial. Sua crise no casamento com Serena Joy (Yvonne Strahovski) só salienta o caso, o que também provoca outra discussão na série: a competitividade feminina impulsionada pelos homens. Serena não vai deixar barato o que está acontecendo dentro de casa, e suas táticas sutis vão ser os piores revezes de June/Offred. Neste mundo pesado em que liberdade de expressão é algo fora de moda, o foco recai sobre como estas mulheres de diferentes classes lidam com seus problemas e a opressão, ainda que cada uma sofra diferentes embates de diversas maneiras.
Os figurinos também dão o tom da produção. Todas as aias, ao se vestirem, cobrem a cabeça e o corpo de vermelho, como se a cor lembrasse o pecado, o desejo, ainda que entre em paradoxo com sua função essencial, que é engravidar. As esposas inférteis dos comandantes usam um verde pálido, assim como seu papel perante os homens. Ainda que algumas sejam muito mais inteligentes e sagazes, como é o caso de Serena, em geral são apagadas e extremamente submissas aos seus maridos, assim como são educadas para sentirem rancor e inveja das aias. Mais pálido ainda é o cinza das criadas, que cuidam da alimentação e outros afazeres domésticos do lar, como faxineiras ou, na realidade, escravas. Como não poderia deixar de ser numa sociedade tão retrógada, a maioria é negra. A direção de arte entra neste paradoxo com um mundo monocromático em que as cores do figurino ganham ainda mais destaque. Sem contar a fotografia, uma das mais belas produzidas atualmente no meio audiovisual televisivo e de streaming.
Entre tantas qualidades técnicas, o que assombra mesmo neste conto dividido em oito partes é a qualidade do elenco. A “tia” Lydia de Ann Dowd é odiosa pela forma como conduz a “educação” das mulheres, mas é tão humana em sua caracterização que até compartilhamos do carinho que ela sente por suas “sobrinhas”. Alexis Bledel deixa sua Gilmore Girl para trás numa atuação tão emblemática que lhe rendeu um Emmy – no total, o programa ganhou 8 estatuetas, inclusive Melhor Série em Drama, se consagrando como o grande vencedor de 2017. Yvonne Strahovski, que já causava medo pela psicopatia em Dexter, agora atinge novos índices de maldade com uma interpretação tão contida que dita mais por suas ações do que pelas palavras. O mesmo acontece, ainda mais potencializado, na protagonista Elisabeth Moss. Toda a repressão de sua June/Offred ganha contornos mais dramáticos por sua visão. Os grandes olhos claros da atriz transmitem a angústia e tristeza que sua personagem passa a cada cena. E quando resolve botar tudo pra fora, como explanado numa forte cena com a governante da fronteira mexicana, o resultado é arrebatador.
A narrativa pode ter sido originalmente lançada há mais de 30 anos, mas The Handmaid’s Tale parece um retrato atual de um mundo dominado por Trump, religiões intolerantes e censura nos mais diversos âmbitos. A primeira temporada fecha basicamente com o final do livro no qual foi inspirado, mas há ainda muito o que contar na segunda já confirmada. O texto original pode até não ter sido preparado como uma ode ao feminismo, mas com certeza mostra o quanto a luta do “sexo frágil” é mais do que necessária e importante nos dias de hoje. Uma terra onde estupro é culpa da mulher, em que tudo que os homens poderosos fazem tem como desculpa o contexto religioso, em que os desafortunados são facilmente descartados e até mortos. Será tão distante da realidade atual assim? É uma carta aberta da necessidade urgente de discussão e ação sobre o tema, especialmente sobre liberdade de pensamento. Ou, se não cuidarmos, logo a República de Gilead pode emergir. Não só nos EUA, mas aqui no Brasil também.
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