Crítica


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Sinopse

Jocelyn é uma das maiores estrelas pop da atualidade. Depois de ter um colapso nervoso e ver essa posição ameaçada, ela decide fazer de tudo para permanecer no topo. É então que Jocelyn conhece um sujeito estranho.

Crítica

Um dos filmes mais injustiçados dos anos 1990, Showgirls (1995) tem como protagonista uma jovem ambiciosa e determinada a ascender no voraz mundo do entretenimento de Las Vegas, nem que para isso seja preciso desbancar colegas veteranas e expor a nudez de seu corpo como mercadoria a ser consumida desenfreadamente. O cineasta Paul Verhoeven foi acusado de mau gosto e a produção se tornou um fracasso retumbante, especialmente porque parte do público não digeriu a ironia corrosiva contida na trama em que tudo, inclusive a consciente vulgaridade, era exacerbado até gerar uma esterilidade indicativa do status quo de uma indústria. Sendo um conto de fadas pós-moderno revelador da sordidez do showbiz, o longa-metragem gerou uma crítica ácida à busca desesperada por estrelato e aos mecanismos do espetáculo norte-americano que desumaniza em prol da velha máxima “o show tem de continuar”.  Se o diretor Sam Levinson tivesse utilizado estratégias semelhantes em The Idol, a sua nova série poderia ter alcançado um resultado efetivo, para além da superfície apelativa e, quem sabe, até as soluções psicológicas evidentemente tortas poderiam ser encaradas como gestos propositais de crítica a uma sociedade doente. E, ainda, quiçá toda a obscenidade poderia dar suporte a um olhar ferino sobre a gratuidade numa coletividade hipócrita que consome os ídolos e os vomita logo depois.

Uma pista de que Sam Levinson deve, ao menos, ter observado Paul Verhoeven no horizonte é que em algum momento de The Idol aparece um trecho de Instinto Selvagem (1992), thriller brilhante do realizador holandês, justamente, por fazer uma releitura provocativa do cinema noir, inserindo nele uma vulgaridade que rompe os modelos tradicionais. Mas, definitivamente, se houve alguma inspiração na abordagem de Verhoeven o resultado disso não passou de uma tentativa barata de imitação, nem cáustica e tampouco corrosiva.  A protagonista é Jocelyn (Lily-Rose Depp), superstar da música que vive um momento complicado após a morte da mãe. Rodeada por uma equipe gigantesca encarregada de fazê-la trabalhar duro em prol da iminente turnê mundial, é encarada como menina frágil sugada por inúmeros vampiros que dela dependem comercialmente. De modo acelerado, a série faz dessa figura uma espécie de combo por mostra-la: 1) órfã e psicologicamente abalada; 2) exposta em virtude do vazamento da foto com o rosto cheio de esperma; 3) com dificuldades para assimilar a coreografia da música de trabalho; 4) pressionada pelos empresários para dar certo, por estar “sem grana”. As aspas são porque em nenhum momento essa suposta fragilidade financeira aparece, senão como outro elemento na soma burocrática de problemas utilizados para aumentar a pressão sobre Jocelyn.

Desde o começo, o diretor Sam Levinson acintosamente pretende demonstrar que a série é despudorada, vide a forma como as curvas de Jocelyn são incessantemente exploradas pela câmera, as cenas pretensamente sexys com corpos esculturais interagindo em câmera lenta, os vislumbres de sexo acontecendo, etc. Faria todo o sentido se ele apostasse (como Verhoeven, de novo ele) num esvaziamento do aspecto erótico por meio da exacerbação, ou seja, mostrando tanto sexo e corpos de um modo vulgar ao ponto de excluir deles o tesão e os desumanizar (assim fazendo um comentário sobre os mecanismos da indústria). Estamos diante de uma história que anuncia o desejo de criticar o mundo do entretenimento, de o enxergar como máquina exploratória, mas que reproduz a atitude exploitation sem oferecer uma visão contestadora. O tiro sai completamente pela culatra porque a radiografia desse mundo podre é superficial e pouco efetiva. Também porque os idealizadores não se decidem entre colocar Jocelyn como vítima do sistema ou encara-la enquanto exemplo de diva autodestrutiva. Já a questão do mau gosto precisa ser colocada com responsabilidade, afinal de contas “afrontar o bom gosto” pode ser atitude poderosa, então nem tudo que desvia do “bom gosto” é ruim. Pelo contrário. Mas, em The Idol o mau gosto não vem do sexo, mas da mediocridade da abordagem.

Jocelyn se envolve com Tedros (The Weeknd), sujeito enigmático que domina sua vida e começa com ela uma relação de dominação. É perceptível o que Sam Levinson queria fazer: mostrar esse relacionamento como nova etapa da derrocada da estrela. No entanto, falta desenvolvimento nessa conexão entre a diva e o homem ordinário que reivindica ser genial. Como o namoro vira uma espécie de catalisador de todos os demais vieses, pesa muito negativamente a inexperiência do cantor The Weeknd como intérprete. Seu personagem deveria ser perigoso e misterioso, uma força ambivalente que leva Jocelyn ainda mais ao abismo, mas acaba se tornando uma caricatura. De fato, The Weeknd não consegue dar uma dimensão consistente a esse sujeito, exemplificando com seu desempenho engessado as fragilidades da série. Em cinco episódios, personagens vêm e vão sem cerimônia e outros se tornam cada vez mais decorativos, tais como: a amiga escanteada (uma hora ela está absolutamente preocupada e oprimida, logo depois confraterniza com todos); o funcionário que esconde talento e mágoa de Jocelyn; a eleita para substituir a diva em processo de colapso – numa tentativa desajeitada de crítica que mira referencialmente em A Malvada (1950), não por acaso o filme utilizado como modelo por Paul Verhoeven em Showgirls. O diretor trata os personagens de modo meramente ilustrativo, deixando que eles percam a credibilidade e a capacidade de nos mobilizar por simples inanição.

The Idol esvazia sua ojeriza ao mundo da música, erra feio ao desenhar a psicologia conturbada de sua protagonista, enche a trama com coadjuvantes gradativamente inutilizados e tem em Tedros um personagem sofrível. Situações como o sexo oral a céu aberto, a transa ruidosa no provador da loja de luxo, a recaída de Jocelyn com o ex-namorado, a acusação de estupro que recai sobre este, a masturbação da estrela enquanto ela gravava uma música (na frente de todos os colaboradores) e a agressão com o objeto causador de sofrimento pretendem atingir um resultado provocativo, mas são demonstrações da vontade de causar polêmica (escândalo). Elas nunca se aproximam verdadeiramente de gerar contestação por meio da controvérsia. Trata-se de uma série que anseia criticar o mundo das celebridades, mas que utiliza o sensacionalismo como princípio, não enquanto ferramenta irônica; os idealizadores pretendem fazer de Jocelyn uma vítima dos abutres que a cercam, mas involuntariamente transformam a série numa dessas aves carniceiras que evisceram e devoram o corpo da menina. Se as coisas estavam ruins nos quatro episódios anteriores, no derradeiro elas ficam ainda piores. Jocelyn muda de opinião sobre Tedros como quem troca de sapato e Sam Levinson constrói esquematicamente (beirando o ofensivo) a inversão entre opressores e oprimidos. O resultado é um desastre quase completo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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